segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Cultura & Arte

C R Ô N I C A
A PRIMEIRA COMUNHÃO
                  Por João Bosco
                             


EM JUNHO DE 1952 o padre David  viria, como sempre, para celebrar a festa de Santo Antônio. Eu completara meus 7 aninhos em novembro do ano anterior. Como era corrente ensinar-se, a criança até aos 7 anos é pura e sem pecado; depois dos 7, perde a inocência e vira pecadora. Urgia, pois, que me confessasse, para sair do estado de pecado em que caíra, em razão da idade.
            Esse era um ensinamento incutido como obrigação de todo bom católico e toda família jenipapeirense o punha em prática. Isto é, preparava seus filhos para a primeira comunhão, que se realizaria na primeira festa de guarda que houvesse após completarem 7 anos.
            Toda criança próxima dessa idade sabia disso, e a perspectiva das  torturas do aprendizado preparatório não era nada animadora.
            Tal conhecimento custou-me caro, principalmente por causa de Lista, meu querido sobrinho e irmão de leite. Companheiro em tanta travessura, cúmplice em tantas traquinagens, não me perdoou ao ouvir-me dizer um “nome feio”. Levei azar porque o fato se deu logo após eu haver completado 7 anos. O  que o movia, entretanto, não era o nobre e fraternal interesse de resguardar minha alma cândida ou protegê-la do cometimento de novas recaídas,  mas puramente o interesse mesquinho de tirar proveito pessoal do conhecimento que tinha desse meu pecado mortal.
            - Olhe que eu enredo tudo ao vovô Loura! - ameaçava o pequeno chantagista, quando queria uma coisa.
            Eu, temendo a mão pesada do velho, sempre o atendia, fazendo ou dando-lhe o que bem lhe aprouvesse pedir. Foram meses vividos no pavor da revelação e do inevitável castigo subseqüente. Imagine, agora, o grande nome feio, por cuja pronúncia supunha viver em mortal pecado e tão caro pagava:
            -  “Cão!”
            Em janeiro, Mãe Baixa (Geralda) começou os preparativos para esse importante evento religioso, e eu, finalmente, pude ver-me livre das chantagens do meu querido sobrinho. A perspectiva da confissão libertava-me de suas garras tirânicas. Graças a Deus!
            Não foi um período fácil o do aprendizado eucarístico. Eram rezas compridas, maçantes, difíceis: "Padre Nosso, que estais no céu, santificado seja o Vosso nome... “; “O Pão Nosso de cada dia nos dai hoje...”; “Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco...” ; “Santa Maria, mãe de Deus...”; “Creio em Deus Pai, todo poderoso, criador do céu e da terra...”; “Salve Rainha, mãe de misericórdia...”; “Eu, pecador, me confesso a Deus..." Eu, rezando atrás, repetindo - decorando tudo.
            Nem todas essas orações seriam objeto do questionário confessional. Mas não fazia mal que as aprendesse. Era obrigação, aliás, de todo bom cristão tê-las na ponta da língua. Principalmente aqueles que, através da primeira comunhão, pretendiam confirmar sua crença e firmar compromisso com seu Deus, criador de todas as coisas.
            Passado um mês, em que eu apenas a acompanhava repetindo essa enfiada de rezas e doutrina, veio a etapa de verificação:
            - Reza o “Padre Nosso” - mandava a catequista.
            - Padre Nosso, que estais no céu, santificado seja o Vosso nome...
            - Reza o "Creio em Deus Pai"; a “Salve Rainha”; o "Eu, pecador".
            Eu rezava, “engrolava”, comia frases inteiras só para me ver livre daquela tortura. Mas, então, vinha a parte doutrinária.
            - Quem é Deus? 
            - Deus é um Espírito perfeitíssimo e eterno, criador do céu e da terra.
            - Quantas pessoas há em Deus? Quantos são os Mandamentos da Lei de Deus? E os da Igreja?
        O pobre do aprendiz ali, respondendo, repetindo, “papagaiando”, trocando um nome aqui, atropelando outro ali, engolindo letras e sílabas, confundindo-se nos mistérios da Santíssima Trindade. Vez por outra, levando um muxicão.
            Aquilo era uma tortura, toda noite. Às vezes adormeciam, catequista e catequizando, na monotonia daquela cantilena. Era preciso ter tudo na ponta da língua, que o padre David era duro.
           - Arrocha com ele; o menino não pode voltar dos pés do padre - recomendava meu pai, sempre que assistia a esses interrogatórios nas aulas de catecismo.
            "Voltar" significava ser reprovado no teste da confissão.
            No dia marcado, uma quinta-feira à tarde, antes de seguirmos para a igreja, Mãe Baixa deu-me um banho em regra e fez um ensaio final. Convenientemente preparado (ou amedrontado?), "entonado" em  roupa nova, partimos, eu  e  minha preceptora espiritual, em busca do galardão eucarístico.
            Chegamos. Igreja quase vazia. No confessionário, apenas uma velha, que pouco se demora. Não devia ter muitos pecados. Infelizmente não havia nenhum outro novato da confissão. A presença de outras pessoas sempre ajudaria a dividir a carga dos medos, das tensões, das angústias. Nesses casos, a espera era até benéfica, vez que ajudava a amortecer a ansiedade.
            Pronto: chegou minha vez! Aí, sinto o estômago "cair". Nas mãos, abundante suor. Movimento-me em passos trôpegos, como se fosse um condenado a caminho da forca e não em busca da salvação. Fico ali, de pé, à espera.
            - Ajoelha-te, meu filho! (Cultor do bom português, o padre não dispensava a colocação correta do pronome).
            Aquela voz, apesar de sussurrada, era imperiosa. Eu, estabanadamente, dou com a cabeça na portinhola do confessionário. Atordoado, quase não escuto a ordem:
            - Faz o "Pelo Sinal".
            Autômato, obedeço.
            - Faz o "Nome do Pai".
            Mecânico, eu o faço.
            - Reza o "Creio em Deus Pai".
            O que era mesmo que o padre dizia? Não consigo entender. Enquanto era o gesto mecânico, tudo bem. Mas na hora de falar, cadê a voz? Maxilares travados de tensão e angústia, fico mudo. Faço um esforço enorme, e nada. Procuro a língua, não a encontro. Tento abrir a boca, mas a tenho pregada, rígida. Quando, afinal, consigo movimentar os lábios, não sai som. Perco a noção do tempo. Percebo alguém falando... longe, bem longe... Mas, quem? E o que diz? A voz, autoritariamente anasalada, repetia:
            - Reza o "Creio em Deus Pai".
            Depois do que me pareceu uma eternidade, me dou conta de que era o padre David quem estava falando. Mandava que eu rezasse alguma coisa. Mas, o quê? Seria o "Creio em Deus Pai"? Não seria o "Eu, pecador"? Pelo sim, pelo não, começo a rezá-lo. Isto é, penso que rezo. Na verdade, apenas balbucio palavras soltas, desconexas, em que se misturam o "Padre-Nosso", o "Creio em Deus Pai" e outras litanias.
          Nem sinto o joelho em brasa, só o tremor  que me percorre o corpo. E o frio  intenso,  como  se  estivesse  com  febre alta ou sezão. De repente, porque quase aos gritos, escuto a ordem terrível:
            - Levanta-te. Vá aprender o "Creio em Deus Pai" e volta em outra ocasião.
            Era o que meu pai não queria que acontecesse. Mas ali estava o fato inconteste, consumado: voltara dos pés do padre. Fora reprovado, ignominiosamente reprovado no vestibular do Senhor. Mãe Baixa está mortificada; só balança a cabeça, não acreditando no que vê.
             Levei uma grande surra.
            Quatro meses depois, por ocasião das festas de outubro, consegui ludibriar o padre. No meio de uma leva de fiéis adultos, no dia "D" das confissões, consegui ser aprovado. E nem precisei rezar o "Creio em Deus Pai" ou outra qualquer reza introdutória. Mal me ajoelhei, já o vigário me foi ordenando:
                  - Conta-me os teus pecados.




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