sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Cultura & Arte - Crônica de João Bosco da Silva

O BOLO DE Botiqueira

Por: João Bosco da Silva 

          OS FESTEJOS religiosos na pequenina Jenipapeiro eram acontecimento ímpar em minha vida e, de resto, na vida de todos os garotos de meu tope. Os motivos principais de tanta euforia eram os bolos de Botiqueira, com que os nossos pais nos brindavam na noite do leilão, e a queima dos fogos - rojões, carretões e baterias - que Batista, o velho fogueteiro, fazia estourar durante as noites de novena e no dia da festa-de-guarda.
     Chiiiiiiiiiii........................................... puuuuummm!

    Nada mais empolgante e ao mesmo tempo aterrador que ver aquele rabo de fogo serpentear no espaço soltando fagulhas para todo lado e estourar nas alturas! Depois, era a grande disputa pelo foguetão queimado. Só os mais valentes conseguiam o troféu, na corrida ou no braço. 
   Para a população em geral, essas festas constituíam uma quebra da rotina, uma breve interrupção na trabalheira do campo, um refrigério para todos, fosse no campo espiritual, fosse na parte profana. As novenas antecipavam parte dessa animação, cujo auge se dava na véspera da missa cantada, com a realização do grande leilão e quermesses e bancas de comida por toda parte. A venda de bebidas, nesse tempo, ainda não fazia  parte do grande marketing  das festividades  religiosas, tampouco o caráter argentário era tão forte como agora. Isso quer-me parecer que tais celebrações eram mais autênticas em sua pureza cristã.
   O adro da pequena capela enchia-se de gente. Mulheres pias, que iam prestigiar o acontecimento com rezas e cantos; sisudos senhores, que iam colaborar na arrematação das jóias do leilão; rapazes e moças, que iam para aproveitar a oportunidade de uma paquera, arriscar um começo de namoro ou, até quem sabe, contratar casamento para o queima do dia seguinte, uma vez achassem noivas dispostas à arriscada aventura. E, finalmente,  a  meninada, que ia para se fartar nos doces e bolos em que eram exímias Biluca, Carmina e Botiqueira, sendo esta a melhor boleira da região.
   Os festejos religiosos eram um cromo da vida simples, bucólica e ingênua, um congraçamento em que toda a população se irmanava, cada qual metido em sua fatiota, procurando fazer bonito.
   - Se você levantar a saia daquela moça ali, lhe dou um bolo - prometia-me Fulano de tal, querendo se vingar do "fora" que levara da senhorita.
  O Fulano e a pretensa vítima de sua brincadeira de mau gosto haviam mantido, quando adolescentes, um amor platônico, aquele tipo de romance em que todos os sonhos são possíveis, todas as juras são feitas e todas as promessas assumidas. Moça pobre, talvez a primeira a sair para estudar fora, voltava agora em plena forma física, esbelta, elegante, deveras bonita, já cursando o 4º ano de Psicologia. O rapaz, empolgado, tentou reatar aquele romance de sua adolescência, sendo rechaçado em sua ousada investida. “Arrastara mala”, como se dizia então, quando uma jovem recusava oferta de namoro. O rejeitado, apesar de extrovertido e brincalhão, ficou intimamente ressentido e passou a considerar o episódio a suprema humilhação de sua vida. Daí a tentativa de ridicularizar a jovem, numa forma de vingança deselegante e mesquinha.
- Vá, vá - dizia ele, empurrando-me no rumo da moça. - Levanta a saia dela e corra; quando você voltar, lhe dou o bolo.
- De qual? - perguntei, meio desconfiado.
- Daquela ali, olha! Tá vendo? Daquela.
- Ah, de ........? Tou vendo.
O prêmio era por demais tentador. Os bolos e doces eram o fascínio de todo garoto. Principalmente os bolos de Botiqueira, inegavelmente a melhor boleira da cidade. Suas roscas e bolos de goma eram uma delícia; de dar água na boca os seus pães-de-ló e pudins. Até mesmo os adultos ficavam se babando à sua visão.
   Fiquei numa dúvida terrível, dividido entre a vontade de saborear a apetitosa iguaria e o medo de alentada sova, caso meu pai viesse a saber do malfeito. Procurei, por isso, adiar a decisão o máximo que pude. Sem querer perder o bolo, mas com medo de arriscar, inventava desculpas, criava dificuldades: que a moça era grande e podia me bater; que os irmãos dela podiam me dar uns cascudos; que estava sujeito a levar uma pisa, quando chegasse em casa. Eram muitos os senões, que o mandante ia demolindo um a um: que a moça não reagiria; que, se houvesse reação, eu conseguiria escapar; que os irmãos dela não estavam por ali e que o velho Loura jamais iria saber.
- Só se for bolo de Botiqueira - disse eu, por fim, como se com aquilo jogasse a última cartada para fugir à tentadora e arriscada tarefa.
   A condição imposta, como já frisei, não passava de protelação;  a banca de Botiqueira  regurgitava de iguarias para todos os gostos. Por essa razão, a exigência de que o prêmio fosse o bolo dela só facilitava as coisas.
- Certo, bolo de Botiqueira - concordou o rapaz, enquanto ia me empurrando para dar cumprimento ao acordo.
- Só se me der logo o bolo - exigi, já com segundas intenções.
   Enquanto isso, o leilão continuava animado, algumas jóias atingindo preços elevadíssimos.
- Quanto me dão pelo capão assado? - gritava o leiloeiro, suspendendo bonita "penosa".
- "Quinhentorréis" - brada alguém do meio da multidão, para iniciar a disputa.
- Quem dá mais? Quem dá mais?
- "Destão" - grita um afobado, dobrando a oferta.
- A jóia é um capão assado, de Biluca - apregoa o gritador, tentando valorizar o produto, ao citar a hoteleira de maior fama do lugar.
   As ofertas iam aumentando, o pregoeiro teimando em não entregar a jóia, querendo mais, incentivando o lavrador a abrir as burras para os cofres de Santo Antônio, o bom casamenteiro.
- Então - dizia ele - não fizeram boas desmanchas? Não estão de bom preço a farinha e a tapioca? Quem dá mais?
   O capão assado já estava "nas alturas", valendo mais de dois mil réis. Aí, percorreu o leiloeiro os olhos pela mesa farta de ofertas e verificou que ainda restavam mais de dez assados como aquele. “É bom não abusar” - concluiu.
- Dois mil réis... e dou-lhe uma; dois mil réis... e dou-lhe duas... Quem dá mais? Quem dá mais? Ninguém? Dois mil réis... E dou-lhe três. Arrematou o velho Janjão.
Logo em seguida, suspende um bolo.
- Bolo de Botiqueira - vai apregoando.
Chovem as ofertas. Depois de tantas:
- Dou-lhe uma... destão; quem dá mais? E dou-lhe duas... destão; ninguém dá mais? E dou-lhe três. A jóia pertence a meu “padrim” Loura - anuncia Antônio Moisés, baixando a jóia. 
Enquanto o leilão corria, a juventude brejeira desfilava no pequeno adro, as moças pela direita, os rapazes no sentido inverso. Decisões eram tomadas. Pares se formavam, namoros encaminhados, conversas de pé-de-ouvido pelos cantos e desvãos ou ao longo das calçadas, um nervoso toque de mãos, um beijo medroso, um rápido abraço de alguém mais afoito.
Em torno de .................... e de mim aumentara a turma de gaiatos, todos querendo ver as bonitas pernas de ..........., a futura "piscolga".
- Só se me der logo o bolo - teimava eu, querendo bancar o sabido.
Após convencer-se o mandante de que eu só iria cumprir a tarefa depois de recebido o prêmio, foi-me dado o bolo, que foi imediatamente comido. Comido não, devorado. Pão-de-ló, de Botiqueira, gostoso. Delícia irrecusável.
- Agora vá - ordena-me o mancebo, demonstrando impaciência, uma vez que me tornara  devedor. - Vá, vá...  senão a moça vai embora.
- Só se me der outro pedaço - retruquei, tentando escapulir.
Pegam-me pelo braço, puxam-me as orelhas. E eu, teimoso:
- Só se me der outro pedaço.
Compram outro pedaço. Mas agora não mo entregam, exigem que, primeiro, cumpra a tarefa. O bolo ali, cheirando, desafiando meu apetite infantil nunca saciado de bolo. Imensa é a vontade; mais que a barriga, crescem-me os olhos. Já comera um bom pedaço. Por que não me dou por satisfeito? Vou cumprir minha parte no negócio, levando atrás de mim a turma de malandros.
O patamar agora está superlotado. Haviam chegado os retardatários. As pessoas mais idosas e algumas senhoras que rezavam dentro da igreja haviam saído para ver o leilão. Grande era o burburinho.
Ponho-me em posição estratégica. O bolo exala, o estômago quer; mais que isso: o estômago exige. Quem é a moça? Nem sei mais. Confundo-me todo. É qualquer uma.
E zás... Tarefa cumprida.
Mas o que se vê, ato contínuo? Uma senhorita no chão, toda enredada no vestido e nas muitas anáguas, como era a moda de então para fazer saia rodada. No afã de saborear a guloseima, havia derrubado minha própria irmã.
No encerramento do leilão, Batista soltou os últimos foguetes, cujo efeito provocou delírio em crianças e adultos ao explodiram no céu, numa apoteose de  chuva de lágrimas coloridas que lentamente desciam do espaço para se diluírem no éter pouco antes de alcançar o chão.
Não ganhei o segundo pedaço de bolo de Botiqueira. Nem me foi dado ver o espetáculo dos fogos de lágrimas. Tampouco comi da jóia arrematada por meu pai, que assim o fazia como exemplar castigo. Mas ganhei, como segundo prêmio, uma dúzia de bolos... de palmatória.

Obs: Esta crônica faz parte do livro DE PÉ - COXÓ, que está sendo postado em meu blog, em capítulos.



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