sábado, 24 de março de 2012

Pensão Cacilda - Por João Bosco da Silva.

    

    João Bosco da Silva, um dos maiores nomes da literatura franciscossantense. Um homem que muito tem honrado o nome de nossa terra, pela sua capacidade intelectual, como pela sua dedicação a transpor para o papel a nossa história com isenção, através dos seus escritos, seus contos, suas cronicas. 
   
    "O capítulo ONZE, do mesmo PENSÃO CACILDA, embora seja em forma de discurso por se tratar de uma ficção (calcada na realidade então descrita), no fundo é um ENSAIO robusto (perdõe a falta de modéstia) sobre toda a agitação sociopolítica e revolucionária ocorrida no mundo e, principalmente, no Brasil, que levaria à intervenção militar, decretando a Ditadura de 1964."

Boa leitura e comentem.

CAPÍTULO ONZE  [1]

- 1 -

FOI TERRÍVEL o burburinho no salão. A transudação, a fumaça dos cigarros, o próprio hálito das pessoas, de mistura a alguma incontida flatulência tornavam o ambiente fechado tão ensurdecedor quanto irrespirável. De tão cheio, mover-se ali era quase impossível. Foi com muita dificuldade que os dois amigos conseguiram se deslocar até a cantina, para tomarem um cafezinho. Para eles, não fumantes, respirar um ar um pouco mais puro foi suave refrigério. Ao retornarem, tomaram acento quase à frente da tribuna, e ficaram calados, vez que era impraticável levar avante qualquer conversação.

Após uma pausa que pareceu demasiado longa, fez-se presente o segundo orador da noite.

“Meus senhores!

“Boa noite!

De repente o silêncio se fez na sala superabafada. Iria usar da palavra o jovem vereador Barroso, eleito com uma boa bagagem de votos, deixando na poeira veteranos de muitos pleitos na edilidade teresinense. Um fenômeno, o cara. Viera do interior fazia poucos anos e já conseguira galgar posição de destaque.

“Depois da bela oratória de meu antecessor, quase nada me resta para dizer. Entretanto, como estou escalado para falar, vou tentar fazê-lo em tempo recorde e da melhor forma possível. Ele traçou nesta tribuna, em linhas gerais, o programa que nos propomos desenvolver, de forma ordeira e dentro da lei. 

“Penso que todos aqui, ou pelo menos a grande maioria, já ouviram falar de Materialismo Histórico, Luta de Classes, Socialismo, Comunismo, e mais próximo de nós, posto que estão pichados nas paredes e muros da cidade dísticos como Reformas de Base, Reforma Agrária, Ligas Camponesas. Gostaria de lhes repassar um resumo do que significa cada um desses sintagmas. Eles contêm, em si mesmos, significações que se encadeiam formando um todo harmônico que resultou na criação e implantação de um novo Sistema Econômico que destronou a primazia do Capitalismo nos aspectos econômico, político, social etc. A ideologia que defendemos já foi vitoriosa na União Soviética, na China, em alguns países europeus e recentemente em Cuba. Isso resultou na divisão do mundo em dois blocos antagônicos que ganharam força após o término da Segunda Guerra Mundial, gerando, inclusive, a chamada Guerra Fria, que é uma luta surda, e às vezes suja, pela supremacia bélica.

“No Brasil, a ideia da derrubada violenta do governo Dutra, conforme propunha o Manifesto de Agosto de 1950, foi substituída três anos depois por um projeto de programa mais flexível e moderado, numa aliança operário-camponesa, embora continuassem constantes da pauta os nove pontos elencados no primeiro documento, que são: 1) por um governo democrático popular; 2) pela paz e contra a guerra imperialista; 3) pela imediata libertação do Brasil do jugo imperialista; 4) pela entrega da terra a quem trabalha; 5) pelo desenvolvimento independente da economia nacional; 6) pelas liberdades democráticas para o povo; 7) pelo melhoramento das condições de vida das massas trabalhadoras; 8) pela instrução e cultura do povo; e 9) por um Exército Popular de Libertação Nacional.

“A luta, portanto, será travada nessas bases e com esses objetivos. Só recorreremos às armas em último caso.

“Esses temas demandariam muito tempo para discussão e aprofundamento. Além disso, em face do avançado da hora, pretendo apenas fazer o resumo histórico do que são as Ligas Camponesas, assunto que nos toca mais de perto. O fim precípuo de explicitação desse tema é trazer à consciência dos senhores a importância vital de nossa luta em face da precária situação em que vive atualmente o proletariado brasileiro e, especialmente, os trabalhadores do Piauí.

“Durante a fala do meu antecessor, pude perceber em muitos dos senhores certa desconfiança ou mesmo o verniz do medo, perceptíveis num leve balançar de cabeça, num sutil piscar de olhos, principalmente quando ouviam mencionar a palavra LUTA! Para sossegá-los a todos, quero lhes informar que a luta que hoje se opera no campo das ideias, será travada mais tarde no campo mais pragmático de uma disputa nas urnas, dentro, portanto, da mais absoluta legalidade. Para que isso seja possível precisamos tratar, urgentemente, da organização e fundação do Partido aqui no Piauí. Só dessa maneira nos será possível competir politicamente.

“Tendo em vista que meu antecessor – conforme já frisei - abordou apenas de forma geral certos aspectos da luta em que estamos envolvidos, desejaria desenvolvê-los um pouco mais, de maneira mais aprofundada”.

- Percebi um aspecto interessante na fala do nobre vereador – murmurou Bernardo a um Anselmo agora “todo ouvidos”. - Ele fala em primeira pessoa, dando a entender que sabe o que diz e que assume a responsabilidade por aquilo que fala. Outrossim, não utilizou a saudação “camaradas” em nenhum momento. Por que será?

- Vamos ouvi-lo que é melhor – devolveu o interlocutor, sem querer encompridar conversa.

“Como todos sabemos, o mundo vive atualmente sob o estigma de dois sistemas econômicos antagônicos: CAPITALISMO X COMUNISMO. Ou socialismo, se o quiserem.

“O Manifesto Comunista, escrito por Marx e Engels, foi publicado durante o segundo congresso da Liga dos Comunistas, realizado no final de 1847, em Londres. Abre o seu primeiro capítulo com a seguinte afirmação: A história de todas as sociedades que existem até hoje, é a história de lutas de classes. E continua, no segundo parágrafo, a explicitação do que sejam lutas de classes:

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestres e companheiros, numa palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição uns aos outros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre ou com uma transformação revolucionária de toda a sociedade, ou com o declínio das classes em luta

 “Penso que esse axioma explica muito bem todo o significado de Lutas de Classes. É a partir dessa compreensão que Marx constrói toda uma teoria baseado no trinômio Tese X Antítese = Síntese que, enfim, vai  ensejar a transformação dialética da sociedade. A dialética, no entendimento de Hegel, pode ser resumida como sendo um processo que deve ser combatido ou uma tese a ser refutada, e que supõe, portanto, dois protagonistas ou duas teses em conflito. Aplicando-se isso à luta de classes, temos como tese: burguesia x proletariado. Da contradição dos interesses desses dois conflitos nasce a antítese; e na superação, a síntese.   

“Apliquemos esse postulado ao que vimos acontecer há pouco em Cuba. Qual seria a tese? O fato amplamente comprovado era a existência de um Estado semi-feudal e pró-imperialista, ou seja a exploração capitalista de grupos locais aliados a trustes poderosíssimos de empresas norte-americanas. A economia cubana baseava-se na exploração do criatório de gado e, sobremodo, da cana-de-açúcar. Dos 9,1 milhões de hectares, os latifúndios detinham  aproximadamente 70% das áreas próprias para essas atividades. A distribuição da terra ficava assim: 114 proprietários possuíam 20%; 62 mil camponeses detinham a posse de apenas 15%; enquanto 62,7% das propriedades eram exploradas por camponeses sem terra, sem nenhum direito sobre ela: eram os arrendatários e parceiros, que pagavam aos latifundiários rendas anuais escorchantes, sob as mais diferentes formas. [2]

“E o que seria a antítese? A luta desfechada pelos oprimidos contra essa classe dominante, constituída de falsos patriotas cujos “principais titulares juravam solenemente defender os interesses da pátria, mas se moviam unicamente em função de resguardar e manter o país como semi-colônia, um quase protetorado dos Estados Unidos".

         “A síntese, no caso cubano, foi a vitória da revolução de Fidel, fruto da renhida luta de classes empreendida por essa brava gente, que acabou com a espoliação imperialista na cobrança de elevados royaltys pelo uso de suas marcas e patentes, na exagerada taxação nas remessas de lucros de suas filiais cubanas para suas matrizes na América, na fixação dos preços do açúcar, do petróleo e de tantos outros produtos de que a nação ilheia necessitava.   

“Meus senhores!

“Para melhor evidenciar a importância das lutas de classes, registro, de forma sucinta, como a Igreja católica as entende, em sua doutrina social, lembrando que a grande maioria de seus membros duramente nos critica e nos combate. Inicia afirmando que a palavra tem origem nas cinco classes em que se dividiam os romanos, segundo a importância das suas riquezas e conforme sua categoria social. E define Classe Social como sendo:

Uma categoria social que agrupa um número considerável de indivíduos com semelhante posição econômica, com nível e gênero de vida similares e com uma concepção semelhante de vida.

 “Em seguida estabelece duas classes preponderantes: a Classe Operária como exemplo típico, resumindo sua condição e características: insegurança, escravidão ao salário, pobreza, ausência de vínculos pessoais e ausência de valorização intelectual do trabalho e inibição do espírito criador; e a Burguesia e Aristocracia, que se unem e contam com a força do número, sendo capaz de modificar a seu favor as estruturas sociais (...) com o apoio do dinheiro, da cultura ou da direção.

“E continua fazendo alusão à doutrina marxista, que acusa de simplesmente dividir as classes sociais em apenas dois grupos – proletários e burgueses -, enquanto ela, Igreja, fraciona a sociedade em três grandes classes, que são: 1) Classe trabalhadora (com seus subgrupos); 2) Classe Média; e 3) Burguesia e Aristocracia

“Para Marx não basta uma crise econômica para que aconteça uma revolução e se mudem as estruturas econômicas, políticas e sociais de um país ou nação. Defende, também, que sindicatos, agremiações, associações de classe e outras correlatas não devem lutar apenas por melhoria de salários e de condições de vida. Ademais o proletariado tem de lutar, posto que é de fundamental importância, pela criação de um partido democrático revolucionário, que tenha por finalidade educar os trabalhadores e levá-los a se organizarem para a tomada do poder por meio de uma revolução socialista. Em sua justificativa, alerta para o fato de estarem os trabalhadores submetidos à ideologia dominante que são as mesmas pessoas que se beneficiam dos frutos dessa cruel e desumana exploração. Seria um absurdo – conclui - que a humanidade inteira se dedique a trabalhar e produzir subordinada aos interesses de um punhado de grandes empresas.

         “Passo agora ao exame dos dois sistemas econômicos a que fiz referência no início de minha fala.

“O sistema capitalista tem por lema a livre empresa, a livre concorrência, a livre iniciativa. Determina as formas de trabalho, estabelece a remuneração, e age sempre observando a lei da oferta e da procura, que, em suma, regula o mercado e, naturalmente, os preços. Promete oportunidades iguais para todos, participação nos lucros, postos de direção para o operariado. São muito bonitas as proposições. Eu, entretanto, refuto tudo isso como letra morta porque dos lucros ao operário nada toca; quando raramente algum operário ascende a um posto de direção, passa, obrigatoriamente, a defender a causa patronal. Dessa forma, no final, só engordam os cofres do grupo econômico ou do cartel, formando não uma injusta pirâmide, mas um cruel obelisco social, gerando o que Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil do governo João Goulart, denominou “Clube dos Contemplados”, constituídos de 5% da população que ganha bem, vive bem, veste bem, come bem, educa bem seus filhos, monopoliza os empregos públicos, sonega impostos e absorve os recursos do crédito oficial.

“Para melhor evidenciar essa enorme desproporção na divisão do bolo dos bens que a sociedade produz, vou citar para os senhores alguns números estatísticos de dois ou três anos atrás:

- Em 80 milhões de brasileiros há 75 milhões que não integram o “Clube dos Contemplados” de que fala Darcy Ribeiro;

- Em 80 milhões de brasileiros 77 milhões não possuem terra e não têm interesse na manutenção da velha organização feudal dos campos;

- Em 80 milhões de brasileiros há 50 milhões de analfabetos, virtuais inimigos de um sistema que os reduziu à condição de sub-homens”. [3]

“Diante desses números, eu pergunto: Por que não organizamos logo o partido para que possamos promover, sem demora, a Revolução?”

“Conforme enunciei há pouco, citando Marx e a própria Igreja católica na sua doutrina social, o capitalismo tem escravizado o homem desde as mais priscas eras, visto que a humanidade tem vivido sob o estigma do maldito binômio Capital e Trabalho. Ainda sob Abraão já a escravidão era praticada. Seus descendentes foram escravos de Faraó, no Egito antigo. Os gregos, considerados “pais da democracia”, submetiam seres humanos a essa abjeta condição social, dando sustento a uma casta de ociosos para disporem de tempo para “pensar”. Eram os mecenas de filósofos e outros vagabundos que não trabalhavam. Assim também foi em Roma, no feudalismo da Idade Média, posteriormente nos Estados Unidos e depois... no Brasil!

“Senhor Deus dos desgraçados,

Dizei-me Vós, senhor Deus,

Se é mentira ou se é verdade

Tanto horror perante os céus!”

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Chora, Musa, chora e chora tanto,

Que o pavilhão se lave no teu pranto!”


“Meus senhores!

“Isso é o brado de Castro Alves contra a escravidão, ainda no século passado. Desde 1888 vêm propalando os nossos governantes que essa verdadeira chaga social foi extinta naquele ano pela princesa Isabel. Extinta que nada! Pura ilusão! Os senhores de escravos continuaram com seus latifúndios e com novos escravos, agora com uma disfarçada coleira de ferro no pescoço dos seus meeiros, arrendatários, foreiros e agregados. Aos dois primeiros cobram uma terça parte ou mesmo metade da produção; ao foreiro, uma taxa chamada foro, que de forma alguma é razoável. Aos últimos, tascam-lhes o cambão ou corveia, que é o trabalho gratuito três dias por semana, resquício do feudalismo que chegou até os tempos atuais. E pela meia semana de trabalho remuneram com uma miséria que anda longe de alcançar metade do mínimo.  

“Conforme já frisei, o capitalismo tem escravizado o homem, tornando-o alienado. Tem-lhe negado tudo a que tem direito: moradia, justa remuneração, saúde, instrução, bem-estar social, lazer. Todos aqui conhecemos bem a triste história dos teares ingleses, de suas fábricas, das 15 horas diárias trabalhadas, da parca remuneração, do insalubre ambiente de trabalho e, inclusive, da cruel exploração do trabalho infantil, sob regime de escravidão. Em toda a história do capitalismo, principalmente após robustecido pelos fabulosos lucros obtidos com a Revolução Industrial, repete-se a velha história da exploração do homem pelo homem. Eu reafirmo, sem nenhum sobrosso, que a escravidão persiste, que o operário tornou-se apenas um número estatístico, sem rosto ou aparência humana, um verme esmagado sob o tacão das botas dos poderosos”.

Os dois amigos estavam silenciosos. Bernardo, sempre atento, imerso em pensamentos; Anselmo parecia em êxtase. Na tribuna o discursista parecia não querer encerrar o palavrório:

“E sobre o outro sistema? talvez esteja alguém a se perguntar. O outro sistema é muito mais justo e humano, seja chamado comunismo, marxismo, socialismo ou da forma que desejarem os reacionários. Nele não encontramos a terra em mãos de uns poucos. Não encontramos léguas e mais léguas de boas terras totalmente inexploradas, servindo apenas para especulação. Nelas ninguém pode pôr o pé, plantar um grão de nada simplesmente porque pertencem ao coronel Fulano de tal, ao major Beltrano, ao doutor Sicrano.

“A propósito, vou narrar-lhes um episódio interessante ocorrido com um desses coronéis latifundiários daqui mesmo do Piauí. O referido coronel fazia-se transportar na sua rural Willis, o carrão do momento, quando, de repente, depara-se com um carneiro muito bonito, luzidio de gordo, à margem da estrada. Diante de tão belo exemplar ovino, determina parada ao motorista. Desce do carro, rodeia o belo animal e, embevecido, indaga do caboclo recostado à cerca:

- De quem é esta fazenda?

- É do doutor coronel Dedé Gonçalves, nhô sim.

- Pega esse carneiro e ponha-o na traseira da camioneta – ordena, arrogante.

Como o caboclo vacilasse, ele esclarece:

- Então não me conhece, caboclo? Eu sou o coronel Dedé Gonçalves, seu patrão!

“Vejam, pois, senhores, a quanto chegam as terras daquele senhor. Ele, inclusive, desconhece certos domínios seus. Isso jamais aconteceria se tivéssemos aqui o regime econômico que propomos, porque seria equananimamente redistribuída. Nele o operário trabalha e o que o seu trabalho produz em remuneração é muito mais do que aquilo que foi gasto em todo o processo de produção: insumos, matérias-primas, salários, energia elétrica etc. O excedente disto é o lucro ou a “mais-valia”.[4] No capitalismo o lucro vai, conforme já expliquei, para os cofres do patrão, da empresa ou do monopólio. No comunismo, será o lucro distribuído proporcional e equitativamente entre as pessoas envolvidas na produção, reservando-se uma mínima parte para novos investimentos”.

- Este é que é o sistema justo – gritou um exaltado, da plateia.

Palmas! Palmas! Palmas!

 “Meus senhores!

“Os reacionários apregoam que desejar regular a remessa de lucros para o exterior, que hoje é praticada de forma escorchante, é ser comunista. Que defender uma melhor divisão da terra é fazer comunismo. Que lutar em sindicatos e associações por melhores salários e tentar mudar esse status quo é pretender implantar no Brasil o regime de Cuba, da China ou a União Soviética. Essa pecha maldita inculcada na mente, não apenas das pessoas mais simples como daquelas ditas ‘bem informadas’, pela massiva propaganda reacionária nos meios de comunicação – rádios, jornais, revistas, televisão (esta não chega ainda até nós), os sindicatos urbanos, as ligas camponesas, os grêmios estudantis, as associações de bairro, o movimento de educação de base desenvolvido por membros da Igreja vanguardista – são todos subversivos e comunistas a soldo da Internacional Socialista, pois juram de pés juntos que nisso tudo  está o dedo vermelho da URSS e o braço amarelo da China de Mao.

“A satanização do comunismo é tão grande, que não têm vergonha de propagar que os comunistas querem acabar com a família e a educação; querem socializar as mulheres e acabar com toda a propriedade privada. Nessa desvairada demonização, chegam ao cúmulo de propalar aos quatro ventos que “comunista come criancinha”.

“Quanta estupidez, senhores! Lembrem-se de que também os judeus já foram vítimas dessas línguas viperinas, pois afirmavam: “Judeu bebe sangue de crianças inocentes” De onde provinham (e provém) essas celeradas vozes?

“Socializar as mulheres é uma das acusações. Segundo esses propagandistas de má fé, no comunismo as mulheres se tornariam objeto a ser usado por todos, uma vez que a sua filosofia prega que tudo é comum a todos. Pode haver coisa mais ridícula, senão absurda?

“Em face dessa distorcida concepção, criada e disseminada pela ortodoxia dominante, do ideal revolucionário, qualquer pessoa que demonstre simpatia pela causa, por palavras, gestos ou atitudes, é tachada de subversiva e comunista e ficará marcada em dossiês secretos mantidos pelos Departamentos ou Delegacias de Ordem Política e Social país afora. E disso ninguém escapa porque os “dedos duros” e alcaguetes estão nas escolas e faculdades, nas associações e, quem sabe, até aqui entre nós. Ainda a  propósito desse desvirtuamento do que seja o regime comunista, que se disseminou pela população de modo geral, narra-nos Josué de Castro, em seu esplêndido livro Sete Palmos de Terra e Um Caixão, uma conversa ocorrida entre um coronel latifundiário e um seu morador:

- Seu coronel, o que é mesmo esse tal de comunismo?

- Comunismo é um regime que toma tudo o que é dos outros, que faz mal às filhas dos outros e que empata a religião dos outros – respondeu seguro de si o coronel.

- Mas se é assim, seu coronel, já estamos neste regime – responde ainda mais seguro o camponês.

“Vejam, senhores, o quanto a contrapropaganda deles é eficiente! Também pudera! Dispõem de verdadeiro rolo-compressor: jornais, revistas, rádio, televisão, a ala da Igreja conservadora e todo o peso da máquina estatal amedrontando seus servidores com remoções, transferências, cortes de gratificações, demissões... o diabo! 

“Mas mudando um pouco o enfoque de minha conversa, desejo, nesta oportunidade, me dirigir a vocês, bravos estudantes mal-orientados. Mal orientados, sim, porque lhes faltam bons professores, professores que discutam currículos, que interajam com a clientela estudantil. Que respeitem os saberes das comunidades periféricas numa espécie de diálogo em que a troca de experiências se realize e que resulte em um processo integral de aprendizagem desses saberes e valores. Devemos, pois, meus senhores - estudantes, operários, camponeses, funcionários públicos, todos, enfim - tentarmos reescrever uma nova história em substituição àquela história que a ideologia dos poderosos mandou e manda escrever!”

Enquanto a massa aplaudia, os dois amigos trocavam impressões.

- E agora, o que me diz?

- Bem melhor que o primeiro orador, que fez apenas um discurso ramalhudo.

- Que diabo você quer dizer com isso?

- Discurso ramalhudo é aquele que contém muitas palavras sonoras e frases empoladas, mas poucas ideias.

- Ah! – fez Anselmo, sem dar a entender se concordava ter sido assim o discurso do orador precedente ou se apenas captara a explicação. E continuou:

- E quanto ao Barroso, que está discursando agora?

- Bom, “desenrolado”. Muito bem-posta a abordagem que acabou de fazer à pedagogia de Paulo Freire.

- Quem diabo é esse Paulo Freire? E em que consiste essa tal pedagogia?

Bernardo não se negou a esclarecer, resumidamente, quem era Paulo Freire e em que consistiam os novos métodos de ensino que desejava implantar na educação brasileira.

- Você bem sabe que meu trabalho tem estreita relação com a Inspetoria Seccional do Ensino Secundário, órgão federal ligado ao MEC, que cuida da Educação em nosso estado. Paulo Freire é um pedagogo pernambucano que vem criando métodos novos e escrevendo teses sobre educação. Esse futuroso educador, além de defender uma educação dialógica, protesta veementemente contra o que chama “Peias da ideologia dominante”, que (sic) imobiliza e exclui milhões de seres humanos, nos campos e periferias das pequenas, médias e grandes cidades, dos bens que a sociedade produz, reduzindo-os a simples números estatísticos.

- Eu não disse que o Barroso era bom! Conhece até esse Paulo Freire.

- Sim, acho que o cara deve ter lido alguma coisa sobre ele, que é tido e havido como um “provocador cultural”. Sim, é também comunista declarado.

- Lá vem você com seu tolo preconceito.

Enquanto Anselmo protestava contra essa “injusta” avaliação, o orador prosseguia:

“Meus senhores!”

“Feito esse reparo, e tendo em vista que esta é apenas uma palestra e não uma discussão acadêmico-filosófica, passarei ao breve resumo do que são as Ligas Camponesas. E nesse caso, vou dar uma de Doctus cum libro, ou seja, “dar uma de sábio com o livro alheio”, usando como paradigma a belíssima obra de Josué de Castro, já aqui referida – Sete Palmos de Terra e um Caixão.

“Ele intitula o primeiro capítulo como A REIVINDICAÇÃO DOS MORTOS, fazendo questão de citar, como chamada, os seguintes versos de João Cabral de Melo Neto: Nenhum dos mortos daqui vem vestido de caixão. Portanto eles não se enterram; são derramados no chão.

“A reivindicação dos mortos de que fala Josué de Castro é isto: o direito de não descer os sete palmos recebendo terra na cara”.

E explicita, empunhando um exemplar do livro, que mostra ao auditório, passando a ler um trecho:

E por que este desespero em possuir um caixão próprio para ser enterrado, quando em vida esses deserdados da sorte nunca foram proprietários de nada – nem de terra, nem de casa, nem mesmo do seu próprio corpo e de sua própria alma, alugados a vida inteira aos senhores da terra?” - indaga o Autor e ele mesmo responde: Tudo isso só tem sentido quando a gente compreende que, para os camponeses do Nordeste, a morte é o que conta; e não a vida, desde que, praticamente, a vida não lhes pertence. Dela eles nada tiram, além do sofrimento, do trabalho esfalfante e da eterna incerteza do amanhã: da ameaça constante da seca, da polícia, da fome e da doença.

“E continua, mais à frente, o eminente sociólogo da fome:

Daí o interesse do camponês do Nordeste pelo cerimonial da morte, que ele encara como o dia de sua libertação à opressão e ao sofrimento da vida. No seu entender simplista, seria necessário se apresentarem com um mínimo de decência, numa hora de tanta solenidade – a hora do Juízo Final!

“Quão belas palavras, senhores!

“Pelo fato de não saber expressá-las tão bem, apropriei-me do texto alheio, não com a consciência do roubo ou mesmo do plágio, mas como um eloquente elogio a este grande nordestino que tanto batalhou pela melhoria das condições de vida da gente do campo. E mais que um elogio a quem as escreveu, é também o meu brado de revolta e de solidariedade àqueles a quem foram destinadas – os camponeses! Àqueles cujos versos de João Cabral vêm soberbamente confirmar o seu destino infeliz:

                  Esta cova em que estás

                  Com palmos medida

                  É a conta menor

                 Que tiraste em vida.

                 É de bom tamanho

                 Nem largo nem fundo

                 É a parte que ter cabe

                 Neste latifúndio.
 
                É uma cova grande

                Pra teu pouco defunto

               Mas estarás mais ancho

               Que estavas no mundo

 Após esse recital, toda a plateia postou-se em referente silêncio. Era como se todos estivessem orando por aqueles infelizes... Tempo depois, o orador pigarreou e, novamente, tomou a palavra, ainda com laivos de emoção na voz. 

“A primeira Liga Camponesa foi fundada em 1955, por João Firmino, morador do Engenho Galileia, em Pernambuco, e não o fez pensando em defender melhores salários, mas para reivindicar o direito dos mortos de dispor de sete palmos de terra e um caixão, evitando que os corpos dos miseráveis trabalhadores da bagaceira fossem levados para o cemitério num “caixão de caridade”. [5] Portanto o objetivo inicial era de uma sociedade civil beneficente, de auxílio mútuo. Ainda conforme Josué de Castro, o fito era

 ... o de ajudar os moradores a morrer com decência, uma vela na mão, os olhos fitos na chama desta vela, que os ajudaria a orientar seus primeiros passos na escuridão do além, e com a confortadora certeza de que dispunham dos seus sete palmos de terra onde pousar o seu caixão e nele esperar tranquilos o juízo final.

 “Tanto era certo que essa primeira liga não tinha nenhum viés político ou mesmo reivindicatório, que o dono do engenho foi convidado a ser o seu presidente de honra, o que foi aceito. Somente depois, quando outros donos de engenhos começaram a abrir-lhe os olhos para o perigo de aceitar a “honraria” da presidência de uma entidade que poderia lhe causar grandes transtornos no futuro, foi que as Ligas tomaram o viés político com a entrada em cena do advogado Francisco Julião, então deputado estadual por Pernambuco.

“Mas, senhores”

“A propósito ainda de demonização do comunismo e por achar que o que lhes tenho a dizer em seguida guarda muita semelhança com a situação dos nossos espoliados cidadãos – proletários urbanos e camponeses – peço que me permitam avocar George Orwell, que escreveu em 1945, um livro denominado A Revolução dos Bichos, logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Seu texto, dizem os editores na orelha do livro, foi imediatamente percebido como uma sátira feroz da ditadura stalinista. Escrito como fábula, naturalmente as ações eram desenvolvidas pelos bichos, em um regime totalitário. A analogia, continuam os editores, era escancarada, pois referia-se aos expurgos, exílios e assassinatos que estavam ocorrendo na União Soviética. E perguntam ainda: Como não identificar Stálin no despótico Napoleão e Trotsky no proscrito Bola-de-Neve? Bem, identificar a Granja como sendo o Kremlin também não era difícil. O livro se inicia com um discurso do Sr. Jones, um porco com estrelas de major, então o premier da Granja, perante os “camaradas” reunidos no celeiro: Camaradas, (...) Sei que não estarei convosco por muito mais tempo, e antes de morrer considero uma obrigação transmitir-vos o que aprendi sobre o mundo.

“E vai o major Porco desfilando uma série de experiências colhidas ao longo de sua vida porcina até a seguinte tirada filosófico-materialista:

O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não corre o que dê para pegar uma lebre. Mesmo assim é o senhor de todos os animais. Põe-nos a mourejar, dá-nos de volta o mínimo para evitar a inanição e fica com o restante. Nosso trabalho amanha o solo, nosso estrume o fertiliza, e no entanto nenhum de nós possui mais que a própria pele.

“E prossegue enumerando os bens que cada animal produz: os litros de leite das vacas, as crias; as dúzias de ovos e os pintinhos das galinhas; os potrinhos dos cavalos e assim por diante, até desaguar numa conclusão-proposta que é a seguinte:

Não está, pois, claro como água, camaradas, que todos os males da nossa existência têm origem na tirania dos humanos? Basta que nos livremos do Homem para que o produto de nosso trabalho seja só nosso. Praticamente, da noite para o dia, poderíamos nos tornar ricos e livres. Que fazer, então?

         “A obra do indiano que estudou na Inglaterra” – continua o orador –, “ serviu o exército britânico na Birmânia e lutou como voluntário na guerra civil espanhola, pretendeu realmente satanizar o regime comunista e debochar dos seus dirigentes. Houve expurgos, exílios e assassinatos na Rússia? O trabalho nas fazendas coletivizadas era cruel e desumano? Possivelmente – sim! Mas não encontrarão os senhores muita semelhança no regime capitalista? O que dizer dos seus espoliados trabalhadores? E o grande irmão do Norte, com sua famigerada doutrina América para os americanos, não personificará também esse sanguessuga de que falava o major Jones, o porco-chefe da Granja que, ao final de sua alocução, indaga: Que fazer, então?

         “Senhores, eu lhes faço a mesma pergunta: Que fazermos, então?”

         Antes que público pudesse dar uma resposta, uma potente voz atroou no recinto:

         - Os “tiras” estão chegando, camaradas. Fujam todos, depressa!

Os berros eram de um dos olheiros que a Célula costumava colocar de atalaia na desembocadura das ruas que iam dar na Praça Rio Branco e, consequentemente, no prédio em que se faziam as reuniões do incipiente PCdoB.

Ainda bem que no prédio havia um largo portão fronteiro à Praça da Bandeira, além de janelas e duas portas laterais, dando uma para o Hotel Piauí e a outra, para a Igreja de N.S. do Amparo, situação que, em caso de emergência, ensejaria rápida evacuação.

A debandada foi geral.

Bernardo, que se encontrava junto à porta do lado do Hotel Piauí, por ela se precipitou feito uma bala. Escondendo-se atrás de jarros de planta e de carros estacionados ao redor do hotel, meteu-se pela Rua Areolino de Abreu, conseguindo escafeder-se ajudado pela fraca iluminação fornecida pela Usina de Força e Luz da Lucaia, ainda movida a lenha.
Quando os milicos chegaram, a Célula era a coisa mais limpa.





[1] Por questão pedagógica, achamos por bem dividir o capítulo DEZ em dois, ficando o ONZE apenas com o discurso do segundo orador da noite. Pensamos que dessa forma facilitamos a leitura dos dois capítulos, tornando-os mais palatáveis. (Nota do Autor)


[2][ Dados colhidos in CUBA: A Revolução na América, de Almir Matos, Vitória, Rio de Janeiro-GB, 1961.


[3]  Dados colhidos do livro Brasil – Guerra-Quente na América Latina, de Maia Neto, Civilização Brasileira, 1965.


[4] A mais-valia é constatada pela diferença entre o preço pelo qual o empresário compra a força de trabalho (6, 8, 10, 12 horas diárias ou mais) e o preço pelo qual ele vende o resultado ou produto. Desse modo, quanto menor o preço pago ao operário e quanto maior a jornada de trabalho, maior o lucro empresarial (Vikipédia)
[5] Caixão de caridade era um caixão que muitas prefeituras do interior do Nordeste punham a disposição da família do defunto para que nele fosse levado ao cemitério. Em lá chegando, o “de cujus”, era despejado na cova, levando areia na cara. (Nota do Autor)


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