sexta-feira, 12 de julho de 2013

Profa. Geralda - Homenagem


   
         Em homenagem a Professora Geralda, falecida no último dia dez, em decorrência de um trágico acidente automobilístico. Pessoa calma, serena, corajosa, mãe de 05 filhos - Licínio Júnior, Carlos César, Ailton José(Didi), Hélio Newton (Zozô) e Adriana - gozava de bom conceito não apenas em Francisco Santos, como em Picos, onde laborou no magistério durante muitos anos. Quem a conheceu, sabe bem as suas qualidades.
         Irmã do professor Mariano da Silva Neto e do poeta e escritor João Bosco da Silva, representou muito para a educação de Francisco Santos, de Picos e conseqüentemente, de todas as regiões próximas a Picos.
         Publicamos abaixo uma crônica escrita pelo poeta João Bosco da Silva.



     M Ã E   B A I X A


      QUANDO MINHA MÃE faleceu aos 06 de outubro de 1945, eu estava com 10 meses de vida. Minha irmã Geralda, então com 9 anos, assumiu a pesada tarefa de tomar conta de mim. De tão pequena e frágil, tão logo aprendi falar, passei a chamá-la “Mãe Baixa”.
      É uma grande figura em minha vida.
      Afirmam os psicólogos que uma das maiores perdas, quiçá a maior, seja a de um ente querido, e o luto, o estado depressivo de que mais a pessoa demora sair. Ora, qual ente mais querido está mais próximo de nós que a mãe, principalmente quando se é criancinha de peito? Logo, a perda de minha mãe, quando eu tinha apenas dez meses de vida, foi um trauma muito grande para mim. Sua falta, portanto, não poderia deixar de ser sentida. Nunca mais sua presença, seu cheiro, seu leite. Seu carinho, nunca mais. Nunca mais a figurinha gorducha andando pela casa, dando ordens, ralhando, falando alto. Nunca mais a figura de preto, luto fechado por Maria, morta em janeiro daquele mesmo ano, uma perda também muito significativa para a família inteira. Aquela figura nunca mais velaria por mim, pela família - por todos nós.
      - A mamãe foi embora... - dizia Mãe Baixa, tentando me consolar.
      Eu, então, suspendia o choro para escutá-la. Como nada acontecesse além do eco triste e espichado “...foiii embooora...”,  logo abria o berreiro sem fim.
      Contam-me que certa tarde trouxeram-me para a sala em que estavam algumas pessoas em visita de pêsames. Entre elas, uma senhora vestida de negro. Tão logo a vi sentada ali, fiquei todo animado. Num gesto instintivo, larguei-me do colo de Mãe Baixa e ao ensaio dos primeiros passos, caindo aqui, caindo ali, corri para ela e estendi os braços.
      Não obstante a acolhida carinhosa, senti algo estranho, diferente. Que teria mudado? O abraço, o olhar, o cheiro, o jeito de tomar-me ao colo? Instantânea e inconscientemente, a repudiei e me pus a chorar.
      Mãe Baixa não mentira. Minha mãe fora mesmo embora. Aquela mulher não era ela. Sarica, nunca mais. Tratava-se de Dasdores, nossa prima, de luto por um parente recentemente falecido. A roupa preta fora a possível causa de minha momentânea confusão.
      Depois desse episódio, cuja lembrança não passa de oitiva, comecei a aceitar a situação como definitiva. E Mãe Baixa foi aos poucos assumindo o lugar de mamãe, no cuidado, no carinho e no amor, sentimento que nos une até hoje feito mãe e filho.
      Mãe Baixa passou a ser tudo para mim.
      Mãe Baixa me dava mingau de goma no dedo, Mãe Baixa me botava pra dormir, Mãe Baixa me dava banho. Mãe Baixa me dava amor. E poucas vezes - ou quase nunca - umas palmadas...
      Fui crescendo e dei de ficar chorão, exigente, mandão, cheio de vontades. Era Mãe Baixa pr’aqui, Mãe Baixa pr’ali. Mãe Baixa corria, Mãe Baixa fazia, Mãe Baixa me satisfazia em tudo.
      - Quelo aga.
      Mãe Baixa trazia.
      Mas aí, por qualquer veneta, já não queria mais água. Ficava zangado, enfezado, de calundu. E derramava a água ou com ela dava um banho na Mãe Baixa. Daí a pouco:
      - Quelo aga.
      Lá se ia Mãe Baixa - de novo - atender.
      Vidinha atormentada ia levando Mãe Baixa, sob os meus caprichos, os caprichos de um pequeno rei despótico.
      Em nossa casa não havia ferro de engomar. A roupa era lavada com sabão de pedra e usada como vinha do secador, isto é, da cerca de faxina em que era estendida. Mas, para mim, ela sempre dava um jeito de arranjar ferro emprestado. Na casa de Mané Loura, de Jorge, de Quincó de Chico, onde quer que houvesse um, ela ia buscar.
      Certa feita, ela engomou uma roupa com todo esmero para irmos à lapinha, na igreja da vila. Não sei bem o porquê, depois de todo pronto - banhado, penteado, vestido – sobreveio-me um daqueles calundus. Ela por ali, me adulando, me paparicando, doida para que eu não desistisse de ir à festividade. A certa altura, sem mais aquela, peguei o resto do mingau do prato e passei em meu próprio rosto e nos cabelos. Em seguida, fui lá fora e completei a obra, lambuzando-me com areia do terreiro. Transformei-me numa coisa sem rosto, uma máscara esquisita, como hoje se vê nas palhaçadas com tortas e bolos. Ela ensaiou sorrir daquela marmota. Pra quê? Fiquei uma fera!
      Como agredi-la? Feri-la? Puni-la?
      Não encontrando forma mais adequada de fazê-lo, comecei a me despir, ao tempo em que ia pisoteando a roupa, deixando-a toda enxovalhada. Em seguida, peguei seu vestido, todo engomadinho, e fiz com ele a mesma coisa.
      Nesse ponto, Mãe Baixa só fazia chorar. Mas eu ainda não estava satisfeito, queria mais. Por isso a fiz ficar de quatro, peguei de uma pedra e - pimba! - em seu espinhaço, várias vezes.
      Não houve lapinha naquele domingo. Mas houve a primeira - e bem aplicada! - surra. Depois chorava eu, chorava ela - arrependidos.
      Por outro lado, havia as birras de Mãe Baixa. Nessas ocasiões, eu podia choramingar, gritar, espernear, chantagear, ameaçar de contar tudo ao nosso pai, que ela não ligava a mínima. Como último recurso, eu passava, então, a xingá-la de todos os nomes feios que sabia e a rogar-lhe todas as pragas e castigos do mundo:
      - Mãe Baixa, você num plesta, vá morrê, vá plo cimitelo...
      Algum tempo depois, toda carinhosa, desfazendo-se em lágrimas, vinha fazer tudo do jeito que eu queria.
      De outra feita, no Viroveu (eu devia estar com 7 ou 8 anos), desatendido em uma pretensão qualquer, ameacei:
      - Vou me matar.
      E tomei de uma corda e saí para o mato. Duzentos metros à frente, trepei-me em um caneleiro bem frondoso e, sabendo que ela viria atrás, fiquei à espera. Não tardou de ouvir sua voz chamando-me:
      - Vem, Bosquim... vem, que a sua Mãe Baixa faz tudo que você quiser...
      Eu, lá em cima, bem caladinho, esperando. Quando ela ficou quase ao pé da árvore, fiz pontaria. De bexiga cheia, pois havida comido há pouco uma banda de melancia, despejei-lhe uma mijada que a ensopou da cabeça aos pés.
      Mãe Baixa, aí, enfureceu-se. Mais ligeira que um gato, escalou os galhos do caneleiro e puxou-me pela perna, derrubando-me ao chão. Tomou-me a corda com que pretendia me enforcar, e pespegou-me várias cordoadas, sem pena e sem dó.
     
      *  *  *
      Pois em março de 1954, de maneira quase inesperada, arrebataram-me a minha Mãe Baixa. Ô dia longo e triste! Na hora do adeus, o "entalo" no peito, a voz não conseguindo sair, a lágrima teimando em me queimar a pálpebra. Eu queria gritar de desespero, mas, como no sonho, em que o grito fica apenas na intenção, essa minha vontade de gritar não se transformava em som audível. Após o fato consumado, só desespero e solidão, e o sentimento do nunca mais...
      Depois de sua partida, o retorno para o Viroveu, com meu pai. A casa agora era só tristeza e silencio. Não consigo tocar na comida. Anoitece, triste e rapidamente. Também em mim, faz-se noite rapidamente. Falta-me alguma espécie de luz. O Velho acende uma grande tora de lenha de amarelo para esquentar a noite fria. Esquenta-me a pele, mas me enregela o coração. Não consigo dormir. E sofro minha primeira noite de insônia.
      O fogo aceso crepita por algumas horas, depois vira brasa. Brasa vermelha, para a qual não me canso de olhar. Fecho os olhos, comprimo as pálpebras com as mãos, cubro o rosto com o lençol. Besteira: não consigo dormir. Essa brasa vermelha vai aos poucos se transformando no vestido vermelho com que ela partira. Depois, ao longo dos minutos, das longas horas, personaliza-se mais ainda essa brasa, dando-me a impressão de que ali está ela de corpo inteiro: seu rosto, seus cabelos negros, seus braços, suas pernas, seu sorriso e... suas lágrimas de despedida. Parece que a revejo, inteirinha e em cada detalhe. Nos raros cochilos, o sonho, a visão, toda ela graça e carinho. E agora, e desde sempre, a impressão auditiva da música de Cascatinha e Inhana, que ela entoava tão doce e tristemente, como se cantasse um amor desfeito, morto:
      Quando ela partiu,
      Só rancho vazio
      Ficou para mim;
      Para o céu voou,
      Comigo deixou
      Solidão sem fim...
      Os últimos três versos eu substituía, e ficava assim: "Pra Jaicós voou / Comigo deixou / Solidão sem fim..." Solidão doída, sem esperança. E continuava a melodia, docemente, tristemente, em meus ouvidos:
      Tudo se acabou,
      Nada mais restou
      Neste meu viver;
      O tempo sem dó
      Apagou do pó
      O rastinho seu... 
      Esperando em vão,
      O meu coração
      Quanto já sofreu...
      Fora ontem, mas, para mim, já fazia um século...
      Pela manhã, eu estava febril, doente. Doente de saudade e de solidão. Mãe Baixa não era mais minha. Agora pertencia a Jaicós.
      Quando voltou, quatro meses depois, feito estudante, já era Geralda.
      Onde ficara a minha Mãe Baixa?

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      Naquele tempo eu não sabia. Agora falecida, no dia 10 deste mês, eu sei, com toda certeza: ficará em meu coração – indelevelmente!
OBS: Dasdores (esposa de Néu), aquela para cujos braços eu correra quando tinha apenas poucos meses de vida, faleceu recentemente. Também a ela, a minha homenagem.
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