sexta-feira, 23 de agosto de 2013

S.O.S. Rio Riachão

         
         Não somos a palmatória do mundo, mas procuramos dar a nossa contribuição para uma Francisco Santos cada vez melhor. Em postagens anteriores, apontamos deficiências na organização urbanística da cidade, seja no transito caótico ou nas construções que começam e não terminam, tornando cada vez mais difícil a vida do cidadão. Também criticamos a conduta da atual bancada na Câmara de Vereadores da cidade, que nunca se manifestam em favor dos interesses dos cidadãos, pois levam apenas e sempre em consideração os seus interesses, sejam eleitorais ou pessoais.   

        Mas, a finalidade desta postagem é apontar para um problema gritante, que vem incomodando os observadores mais atentos. O Rio Riachão vem sendo destruído dia após dia pela falta de uma legislação que iniba a forma abusiva como os construtores vem explorando o leito do rio e as suas margens. 

          O assoreamento do Rio Riachão vem acontecendo há muito tempo, sem nenhuma iniciativa dos poderes para evitar a destruição das suas margens. As insistentes "pontes molhadas" mal planejadas e mal executadas provocaram enormes erosões e alteraram profundamente a estrutura do rio. Hoje em dia, vemos construções feitas próximas a ponte sobre o rio, que no nosso modo de ver, colocam em sérios riscos os moradores destas residências. 

          Entretanto o mais grave no momento é a atuação da construção civil, que vem retirando do rio enormes quantidades de areia, transformando o seu leito em algo disforme, que não conseguimos nem mais identificar onde um dia foi o leito original do rio, roça ou vazante. Quem o conheceu outrora, sabe do que falo. A antiga estrada de tropeiros que margeia o rio e corta um sem número de propriedades, deixando uma ilha entre as propriedades ribeirinhas e as antes tão decantadas vazantes. Pois é amigos, estas famosas "ias" que em um passado não tão distante foram uma espécie de oásis, onde muitos pais de famílias tiraram os seus sustentos. Elas também estão sendo destruídas pela ação do homem. Árvores centenárias como juazeiros, oiticicas e carnaubeiras já foram abatidas de forma irresponsável e em alguns casos sem nenhum fim. Dia desses pude observar um desses pés de juazeiro enormes, abatido, simplesmente para abrir caminho para as máquinas que colhem o material no leito do rio.

         Perguntamos aos amigos leitores. Não seria o momento de repensarmos este progresso que destrói e criarmos leis que preservem o nosso meio ambiente? Aos nossos nobres edis não basta apenas fiscalizar a aplicação dos recursos por parte dos demais poderes, muito menos aprovar títulos de cidadania para Zé do Bá ou Antonio Eletricista. Criar leis que melhorem a vida dos seus concidadãos é uma necessidade urgente. 

          Então caros amigos é hora de defendermos o nosso ecossistema, pois o futuro é logo ali e as próximas gerações poderão encontrar grandes dificuldades para a obtenção de um bem tão essencial e que poderá se tornar muito raro: a água. 

          Abaixo, algumas imagens que fizemos da atual situação do nosso rio. Aos amigos leitores, deixamos que tirem as suas conclusões. 
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Se é assim, governo pra quê?

         Não é segredo, mas o fato de a coisa ser óbvia não faz brotar do chão as obras: o principal problema econômico do Brasil é o imenso déficit na infraestrutura - estradas, ferrovias, hidrovias, mobilidade urbana, portos, aeroportos e energia. Esse déficit se deve à incapacidade do governo federal de dar realidade aos investimentos públicos.

          Como proporção do PIB, o Brasil está entre os dez países do mundo onde o governo menos investe. Um paradoxo, sem dúvida, se levarmos em conta o tamanho da carga tributária - a maior do mundo em desenvolvimento - e a excepcional bonança externa que favoreceu a economia brasileira desde meados da década passada até recentemente.

          Os frutos dessa bonança e os maiores recursos fiscais não foram aproveitados para elevar investimentos, e sim para financiar gastos correntes do governo, consumo importado (que substituiu a produção doméstica), turismo no exterior e grandes desperdícios. Não é por menos, aliás, que o Brasil caminha firme rumo à desindustrialização e, com ela, à queda de investimentos no setor, à exportação de postos de trabalho mais qualificados e à renúncia dos benefícios do progresso técnico que acompanha a atividade manufatureira.

          Mais ainda: o País tornou-se vítima, novamente, do desequilíbrio externo, com um déficit em conta corrente caminhando para 4% do PIB. Nota: é bobagem relativizar o peso desse número com a máxima de que temos reservas altas. Relevante é a tendência observada, que piora as expectativas, leva à contração dos investimentos privados e à pressão sobre a taxa de câmbio.

          Parece paradoxal, mas o fraco desempenho dos investimentos públicos se deve à inépcia, não à escassez de recursos. O teto dos investimentos federais pode até ser baixo, e é, mas o governo não conseguiu atingi-lo. A falta de projetos, de planejamento, de gestão e de prioridades é o fator dominante.

          Há exemplos já "tradicionais" de obras que, segundo o cronograma eleitoral propagandeado, deveriam ter sido entregues, mas percorreram de zero à metade do caminho, como a Ferrovia Transnordestina, a transposição do São Francisco, a Refinaria Abreu e Lima, a Ferrovia Oeste-Leste (Bahia), as linhas de transmissão para usinas hidrelétricas prontas (Santo Antônio e Jirau), etc. A ponte do Guaíba, no Rio Grande do Sul, nem saiu do projeto. Dez aeroportos da Infraero estão com contratos paralisados. Os atrasos das obras nas estradas federais contempladas no PAC são, em média, de quatro anos - para a BR-101, no Rio Grande do Norte, serão, no mínimo, cinco: deveria ter sido entregue em 2009 e foi reprogramada para 2014. Depois de um pacote de concessões de estradas muito mal feito, em 2007, só agora, seis anos depois, o governo anuncia um novo, e em condições adversas, dadas as incertezas da economia e dos marcos regulatórios.

          O emblema da falta de noção de prioridades é o trem-bala, anunciado em 2007. Só transportaria passageiros e, segundo o governo, custaria uns R$ 33 bilhões. O Planalto garantia que seria bancado pelo setor privado. O aporte do Tesouro Nacional não passaria de 10% do total. Graças à inépcia - nesse caso, benigna, porque se trata de uma alucinação - e ao desinteresse do setor privado em cometer loucuras (apesar dos subsídios fiscais e creditícios que receberia), não se conseguiu até hoje licitar a obra. Depois do recente adiamento, o ministro dos Transportes estimou que a concorrência ficará para depois de 2014. Ao ser lançado, o governo dizia que já estaria circulando durante a Copa do Mundo...

          Desde logo, os custos foram grosseiramente subestimados. Esqueceram-se as reservas de contingência e foram subestimados os preços das obras. O custo dos 100 km de túneis foi equiparado ao dos túneis urbanos, apesar de serem muito mais complexos e não disporem de rede elétrica acessível. Esqueceram-se de calcular o custo das obras urbanas para dar acesso rápido às estações do trem. A preços de hoje, a implantação do trem-bala se aproximaria de R$ 70 bilhões. Além dos subsídios do BNDES, que saem do bolso dos contribuintes, o banco seria investidor direto, ao lado da... Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos!

          A obra não foi adiante, mas o governo não desistiu. Para variar, criou uma empresa estatal para cuidar do projeto, que já emprega 140 pessoas. Até o ano que vem, o alucinado gestor governamental do trem-bala anunciou o gasto de R$ 1 bilhão, sem que se tenha movido ainda uma pedra. O atual ministro dos Transportes desmentiu-o, assegurando que seriam apenas... R$ 267 milhões! Sente-se mais aliviado, leitor?

          Admitindo que seria possível mobilizar R$ 70 bilhões para transportes, um governo "padrão Fifa", como pedem as ruas, poderia, sem endividar Estados e municípios, fazer a linha do metrô Rio-Niterói, completar a Linha 5 e fazer a Linha 6 do metrô de São Paulo, concluir o de Salvador, tocar os de Curitiba e Goiânia, a Linha 2 de Porto Alegre, a Linha 3 de Belo Horizonte, construir a ferrovia de exportação Figueirópolis-Ilhéus, a Conexão Transnordestina, a Ferrovia Centro-Oeste, prolongar a Norte-Sul de Barcarena a Açailândia e Porto Murtinho a Estrela d'Oeste, o Corredor Bioceânico Maracaju-Cascavel e Chapecó-Itajaí. E, é certo, poder-se-ia fazer uma boa ferrovia Campinas-Rio de Janeiro, com trens expressos normais, aproveitando a infraestrutura já existente.

          Nessa perspectiva, seriam investidos R$ 35 bilhões em transporte de cargas e outros R$ 35 bilhões em transporte de passageiros, beneficiando mais de 5 milhões de pessoas por dia. O trem-bala, na suposição mais eufórica, transportaria 125 mil pessoas por dia - 39 vezes menos!

          É evidente, leitor, que nada disso é fácil. Acontece que, no geral, as facilidades se fazem por si mesmas. Populações criam o Estado e elegem governos para que se façam as coisas difíceis e necessárias. Só por isso aceitamos todos pagar impostos, abrir mão de parte das nossas vontades e sustentar uma gigantesca burocracia. Os governos existem para tornar mais fáceis as coisas difíceis, e não para fazer o contrário.

O Estadão - 22/Agosto/2013

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quinta-feira, 8 de agosto de 2013

As palavras e as coisas

                              O Estadão - 08/08/2013*

          Existe o mundo das palavras e existe o mundo das coisas. Nunca coincidem perfeitamente, pois as palavras se referem à experiência, mas não são elas próprias aquilo que experimentamos. Parte da angústia humana, e também da beleza de viver, decorre do esforço que fazemos com as palavras para que exprimam, com a menor perda possível, aquilo que vivemos e sentimos.

          É certo, no entanto, que o mundo das palavras não existe para trair o das coisas. Na política, o desejável é que o discurso e a vida estejam muito próximos. Ainda que essa atividade compreenda também a dimensão da utopia, dos desejos, do “dever ser”, os amanhãs sorridentes com os quais os políticos costumam acenar não podem ser apenas instrumentos para o engodo e a trapaça.

          Olhemos o Brasil. É chegada a hora de usar as palavras certas e ajustá-las à realidade. A partir do parágrafo seguinte, entre aspas, vou exercitar um manifesto que, a meu ver, deve ser palavra encarnada.

          “O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. Há em nosso país uma poderosa vontade popular de encerrar o atual ciclo econômico e político. Se, em algum momento, o atual modelo conseguiu despertar esperanças de progresso econômico e social, hoje a decepção com os seus resultados é enorme. O povo brasileiro faz o balanço e verifica que as promessas fundamentais foram descumpridas, e as esperanças, frustradas.

          “Nosso povo constata com pesar e indignação que a economia não cresceu e está muito mais vulnerável, a soberania do país ficou em grande parte comprometida, a corrupção continua alta, e, principalmente, a crise social e a insegurança tornaram-se assustadoras. O sentimento predominante em todas as classes e em todas as regiões é o de que o atual modelo esgotou-se. Por isso, o país não pode insistir nesse caminho, sob pena de ficar numa estagnação crônica ou até mesmo de sofrer, mais cedo ou mais tarde, um colapso econômico, social e moral. O mais importante, no entanto, é que essa percepção aguda do fracasso do atual modelo não está conduzindo ao desânimo, ao negativismo nem ao protesto destrutivo.

          “A sociedade está convencida de que o Brasil continua vulnerável e de que a verdadeira estabilidade precisa ser construída por meio de corajosas e cuidadosas mudanças que os responsáveis pelo atual modelo não querem absolutamente fazer.

          “O povo brasileiro quer abrir o caminho de combinar o incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes e criativas. O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional.

          “A superação do atual modelo, reclamada enfaticamente pela sociedade, não se fará num passe de mágica, de um dia para o outro. Não há milagres na vida de um povo e de um país. Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. Será fruto de uma ampla negociação nacional, que deve conduzir a uma autêntica aliança pelo país, a um novo contrato social, capaz de assegurar o crescimento com estabilidade.”

          ” Que segurança o governo tem oferecido à sociedade brasileira? Tentou aproveitar-se da crise para ganhar alguns votos e, mais uma vez, desqualificar as oposições, num momento em que é necessário ter tranquilidade e compromisso com o Brasil. Como todos os brasileiros, quero a verdade completa. Acredito que o atual governo colocou o país novamente em um impasse.

          “Estamos conscientes da gravidade da crise econômica. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico. Esse é o melhor caminho para que o país recupere a liberdade de sua política econômica orientada para o desenvolvimento sustentável.

          “A volta do crescimento é o único remédio para impedir que se perpetue um círculo vicioso entre metas de inflação baixas, juro alto, oscilação cambial brusca e aumento da dívida pública. O atual governo estabeleceu um equilíbrio fiscal precário no país, criando dificuldades para a retomada do crescimento. Com a ausência de políticas industriais de estímulo à capacidade produtiva, o governo não trabalhou como podia para aumentar a competitividade da economia. O Brasil precisa navegar no mar aberto do desenvolvimento econômico e social.”

          O que vocês leram até aqui, estou certo, lhes pareceu bom. Mas tudo o que vai acima entre aspas, a partir do terceiro parágrafo, não foi escrito por mim, não. São frases da “Carta ao Povo Brasileiro”, assinada pelo então candidato do PT à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em junho de 2002. Disputamos o segundo turno. Fui derrotado. Ganhar e perder eleições são uma rotina na vida de políticos. Grave, nestes quase 11 anos, é a derrota do Brasil.

         Com a Carta, os petistas pretenderam demonstrar que haviam aprendido a ser também moderados.. Há pelo menos um “conservadorismo virtuoso”, que consiste em preservar as instituições democráticas. Esse, o PT desprezou. E há o mau, aquele que nasce da falta de imaginação e da inépcia. O partido andou em círculos, percorrendo a mais longa distância entre dois pontos. Mas em certos casos o pais foi até além, entrando numa espiral negativa, estacionando mais embaixo. Dá arrepio pensar na adversidade da herança que o terceiro governo petista deixará ao Brasil.

          Na política, as palavras e as coisas, como em toda experiência humana, jamais coincidirão. Sempre restarão o espaço da imaginação e o saudável esforço para alargar as fronteiras conhecidas do possível. O que é inaceitável, aí sim, é o uso da palavra como instrumento de engodo e de trapaça. Releiam os trechos da carta petista e olhem o Brasil. O PT usou o universo das palavras para trair o universo das coisas. Usou a política para trair a esperança e a esperança para rebaixar a política. É o que nos mostra o confronto do mundo das palavras com o mundo das coisas.


* José Serra - Ex-Governador de São Paulo e ex-Ministro da Saúde.

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quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Ninguém sabe com quem está falando

                            Por Roberto da Matta 
        As passeatas testam de modo intenso onde estão estão os limites. Elas também desnudam a falta de interlocução entre as forças sociais que o próprio exercício da democracia liberal libertou entre nós. 

          Que o leitor me desculpe a autorreferência, mas para quem caracterizou o sistema brasileiro como dependente de uma dimensão hierárquica (a realidade do mais ou menos) que obriga em saber quem manda ou quem é dono — o famoso, mas pouco avaliado, “Você sabe com quem está falando?” — o mal-estar que nos assola tem tudo a ver com uma ausência de limites relacionada a uma forte presença da igualdade e a ausência significativa, típica do lulopetismo, de alguém capaz de ancorar responsavelmente a cena política.

          A velha oposição entre direita e esquerda que sempre ajudou a montar a nossa cosmopolítica dividindo o mundo entre mal e bem, burgueses vendidos e nós, esboroou-se com as manifestações que trouxeram ao palco uma multidão de reivindicações, a maioria pedindo o final de dois pesos e medidas, de uma ética de condescendência típica das posições lulistas e messiânicas.

          Fincadas na liberdade e exigindo igualdade, as passeatas inauguraram um escandaloso “ninguém sabe com quem está falando!” Deste modo, o mandamento central da nossa cartilha política sumiu depois das reações da presidente, cujo resultado criou novos confrontos. Mas o clímax desta ausência de limites foi a entrevista à “Folha de S.Paulo”, na qual se lê que Dilma e Lula são “indissociáveis”. Formam, como eu insinuei nesta coluna faz tempo, um perfeito ato de ventriloquia. Agora ninguém sabe mais se está falando com o ventríloquo ou com o boneco.

          As passeatas testam de modo intenso onde estão os limites. Elas também desnudam a falta de interlocução entre as forças sociais que o próprio exercício da democracia liberal libertou entre nós. Nas repúblicas, tal papel cabe ao Poder Executivo. Um poder solitário, próprio de um personagem capaz de eliminar as arestas do impessoalismo da dimensão liberal, fundada no consentimento e na difícil ética de dizer não aos nossos desejos e interesses.

          Como entender o nosso pobre, querido, passivo e abandonado “povo” quando ele deixa de ser a parte passiva de discursos populistas controlados por um partido, e passa a ser um protagonista livre a clamar não por uma revolução, mas por um estilo de governar mais sincero, mais honesto e menos mentiroso? Mais próximo das necessidades pagas pelo trabalho desse povo, o que faz das passeatas também uma cobrança. Uma exigência de reciprocidade depois de uma década e pouco de megapublicidade despudorada e promessas não cumpridas?

          A explicação de que tudo foi obra de redes eletrônicas é importante, mas não se pode esquecer que nenhum computador opera sem ter sido ligado. Para que as redes influenciem, é preciso fazer parte de uma teia. De uma rede que valorizamos e seja capaz de ordenar para nós.

          O fato novo é o elo entre individualismo, transparência e igualdade em tempo real e global. É a vida num universo translúcido no qual a comparação é um dado essencial e que, por isso mesmo, não pode conviver com a opacidade de um sistema de governo desenhado para manter os labirintos sombrios dos que se tornam aristocratas (e milionários!) pela política. É preciso liquidar a distância entre o ético e o legal onde nascem as oligarquias e os privilégios que sempre foram o apanágio do poder à brasileira. São eles que separam o abismo entre o circo futebolístico “padrão Fifa” do pão amargo de um transporte, de uma saúde, de uma educação e de uma segurança abaixo de todos nós — as pessoas comuns.

          Vivemos hoje a rejeição de um mundo ideológico tão a gosto de um desonesto receituário político. Esquerda e direita escondem quem manda mais e quem manda menos; quem é realmente responsável pela torrente de escândalos que a mídia e as redes não podem abafar. Do fundo da megalópole dita sem alma, surge um povo livre de partidos. Sobretudo do partido do poder. O povo, curiosamente individualizado na passeata, aponta a dissonância: há um padrão internacional para o futebol, mas não há um padrão decente para a moralidade pública.

          O resultado é uma perturbação histórica. No país do “Você sabe com quem está falando?”; na terra dos barões, dos populistas e dos que sabem tudo, não temos mais com quem falar. Há uma busca, mas a presidente ouve e não escuta. Ela gerencia: decreta e discursa. E quando o faz, cria outras passeatas e abre a coletividade para novos problemas.

          Um lado meu teme pela ausência de atores mais conscientes dos seus papéis; um outro, otimista, acha que começamos a descobrir que democracia tem a ver com uma anarquia controlada. Um sistema onde cada qual sabe do mais difícil: a grande arte de dizer não a si mesmo.

Roberto DaMatta é antropólogo

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