sábado, 7 de junho de 2014

TODOS NÓS TIVEMOS O NOSSO RIO


          Francisco Miguel de Moura, escritor, membro da Academia Piauiense de Letras

Todos nós, principalmente os interioranos, tivemos o rio da nossa infância. E esta lembrança, às vezes traz saudade, sentimento natural que vem por conta de que a água preenche cerca de dois terços do nosso mundo, o planeta Terra. Assim é o nosso corpo também: 70% de líquido, embora animais terrestres.  Todos os poetas têm um rio para cantar. Fernando Pessoa é o grande exemplo. Num poema em que diz amar o rio Tejo. “Só que o Tejo não corre por minha aldeia”. Mas, certamente, as águas do rio de sua aldeia desaguariam no Tejo. Com o trocadilho, faz uma imagem belíssima do seu rio. Da Costa e Silva tem o “Parnaíba, o velho monge, as barbas brancas alongando e, ao longe, o mugido dos bois de minha terra” - o grande rio da saudade do maior poeta piauiense.  Já o meu rio de criança, qual é? O Parnaíba também é o meu rio, “só que ele não passa por minha aldeia”. Em “Jenipapeiro”, minha aldeia, quem passa é um rio que não é rio, é um riacho grande, o Riachão. Mas, no meu tempo de menino, nas cheias de outubro a fevereiro, ele corria como um rio de vergonha. Eu me encantava quando ouvia o ronco de sua primeira cheia, a primeira “cabeçada d’água” em grande altura correndo sobre o leito seco. Era um espetáculo maravilhoso. Quem estivesse no meio não se livraria da morte, a menos que soubesse nadar bem, coisa que eu nunca aprendi. Meu pai era um bom nadador, gostava de atravessá-lo nas cheias, levando as pessoas e seus pertences para a outra margem. Ele gostava também de pescar e pescava com tarrafas feitas por ele próprio, pescava peixes grandes e peixinhos para o nosso almoço, o nosso “pirão”.  Eu só pescava no verão, quando o Riachão baixava a corredeira e deixava poços enormes (para mim, naquela idade). Eram mandis, curimatãs, branquinhas e corrós, que a gente ia buscar dentro das locas. Alegremente, levava o resultado de minha pesca para casa, e então minha mãe preparava o almoço.  Era uma festa.  No tempo das enchentes o meu rio era um rio “macho”, com força, que nos embevecia e ao mesmo tempo nos causava medo. Depois secava e a gente tinha pena, ia apenas tomar banho em cacimbas cavadas no leito. Portanto, meu rio não foi aquele açude em que me banhava nu, com Rosinha também nua, ambos inocentes, no Angico Branco (região de Picos). Ela está imortalizada em meu poema “Sonetos da Paixão” e também num soneto inédito, denominado “Primeira Namorada”, onde eu abro a cortina das minhas mentiras (ficções de poeta) e troco o nome de Rosinha pelo verdadeiro: Francelina.

Todos tivemos o nosso rio como tivemos as nossas namoradas. No caso da escritora Deolinda Marques, deve ter tido namorados, pois ela teve por rio o Guaribas, na hoje cidade de Bocaina, rio que naquele tempo ainda era perene, e agora se orgulha da sua barragem, por mim imortalizada no romance “Dom Xicote”. Mas o Guaribas também foi o meu rio, quando meu pai, professor andejo, morou no encontro do Riachão com o Guaribas, lugarzinho de nome Barra, próximo de Bocaina. Foi quando meu pai fazia tarrafas, pescava no encontro dos rios e fazia a comida para nós pequenos, quando chegava a nossa casa, em silêncio: - Ele estava separado de minha mãe, que ficou na Sussuapara, por causa de brigas do casal. Desse tempo tenho mais saudades. Por isto pergunto, no meu soneto “Saudade”: Por que a saudade é também uma coisa triste? Por que os tempos mais pesados, mais sofridos em carência, são os que mais ficam em nossa memória? Quem chegar a ler “O menino quase perdido” poderá encontrar alguma resposta, em fragmentos, do que estou referindo.

O Itaim, para onde corre o Guaribas, também foi meu rio. Morávamos em “Aroeiras”, do município de Picos. Também foi um tempo salobro e insalubre, tal como as águas povoadas de piranhas do itainense rio. Por essa razão, nunca pus os pés nele. Como sabemos, o Itaim despeja no Canindé: este eu não conheço, é meu elo perdido das águas. Eis a rede hidrográfica do médio Piauí, a parte que começa na zona mais seca, nos contrafortes da Serra do Araripe. Se eu errei alguma coisa, me perdoem os geógrafos. Aqui me interessam primeiro as águas da minha saudade, não os elementos geográficos em si. É uma geografia sentimental.

Sequer tive a oportunidade de estar na foz do Canindé, quando se esparrama no Parnaíba. À nossa Teresina cheguei, para morar definitivamente, em 1964. Mas já conhecia o grande rio desde menino. Só tenho espaço aqui, para contar, que atravessei o Parnaíba, de barco, indo para o Maranhão, numa passagem de nome “Mescla”, ou “Amescla”, ali na altura de quem desce de Elesbão Veloso até o Parnaíba, sem fazer voltas.

No penúltimo sábado, assisti, na Academia, várias palestras sobre o rio Paranaíba e sua morte lenta. Mas, de certo tempo para cá, não tão lenta. Ouvi os discursos de Humberto Guimarães e de Elmar Carvalho. Eles falaram verdades cruas. Nos anos 1960 a gente podia tomar banho em suas “coroas”, que não corria perigo de doenças. Quantas vezes nele nos banhamos, eu, minha família, meus amigos e amigas daquele tempo! São coisas do passado, ficaram em livros, nos jornais, e pronto. O Parnaíba está triste, transformado num esgoto a céu aberto, secando, as margens sem florestas, transformadas que foram em roças de pastagem ou plantio de lavouras de subsistência. Assim, sem o lençol de suas margens, correm areias e detritos para o leito do rio e o aterram. Que maldade! Que barbaridade! Toda a rede hidrográfica do Piauí chega ao Parnaíba já degradada.  Nós não ansiaríamos um porto no mar, se houvéssemos tratado bem o Parnaíba. Agora, babau! Nem porto nem rio.

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sexta-feira, 6 de junho de 2014

Barbosa sai de cena.




               O BRASIL PRECISA DE EXEMPLOS
          O legado do ministro Joaquim Barbosa transcende a prisão de um bando de corruptos poderosos. Ele mostrou que é possível fazer a coisa certa sem precisar transigir ou flertar com o que existe de errado.

          O mineiro Joaquim Barbosa sempre acreditou no esforço pessoal. Filho de um pedreiro e uma dona de casa, estudou em escola pública, formou-se numa universidade federal e assumiu importantes cargos depois de ser aprovado em concurso. À carreira no Ministério Público, acrescentou uma sólida história acadêmica, com passagens, como estudante e professor, por renomadas instituições de ensino do Brasil e do exterior.
          Barbosa construiu sua trajetória sem a ajuda de padrinhos influentes e sem pedir favores. Numa sociedade acostumada a atalhos duvidosos e ao jeitinho, preferiu o árduo caminho da meritocracia. Essa biografia chamou a atenção do presidente Lula. Em 2003, ele indicou Barbosa para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
          O objetivo de Lula era nomear pela primeira vez um negro para a mais alta corte do Judiciário e, assim, tirar do papel a agenda de políticas afirmativas do governo. O que Lula não sabia é que a escolha renderia frutos bem maiores. Ele escalara o homem certo, na hora certa, para desferir o mais duro golpe contra a corrupção na história recente do país. Sorte dos brasileiros de bem, azar do PT.
          Em 2012 e 2013, durante mais de sessenta sessões plenárias, Barbosa comandou o julgamento do mensalão, como relator do processo e, depois, também como presidente do STF. O resultado criminal é conhecido: o Supremo concluiu que o PT subornou parlamentares para se perpetuar no poder, durante o primeiro mandato de Lula, e condenou a antiga cúpula do partido à prisão.O resultado simbólico também é conhecido: a Justiça finalmente se fez valer para todos, sem distinção, o que foi considerado um divisor de águas na luta contra a impunidade que há séculos privilegia os poderosos no Brasil. Anunciadas as penas e decretadas as prisões, Barbosa se tornou uma espécie de herói nacional, o cavaleiro vingador da capa preta, aplaudido nas ruas e assediado para disputar as eleições.
          Mas esse era apenas um dos lados da moeda. A outra face, menos evidente, levou o ministro a anunciar, na quin­ta-feira, que deixará o Supremo em junho, onze anos antes do prazo fixado para sua aposentadoria compulsória. “Minha missão está cumprida”, disse Barbosa.
          Em fevereiro, VEJA revelou que o ministro cogitava antecipar a aposentadoria. Essa possibilidade ganhou força depois de o plenário derrubar a condenação por formação de quadrilha imposta aos mensaleiros. Barbosa, que se acostumara a formar a maioria, acabou derrotado na votação.
          Ele suspeitava que dali para a frente, devido à nova composição do tribunal, tenderia a ser sempre derrotado nos embates criminais mais polêmicos. “Essa é uma tarde triste para o Supremo. Com argumentos pífios, foi reformada, jogada por terra, extirpada do mundo jurídico, uma decisão plenária sólida e extremamente bem fundamentada”, lamentou o ministro.
          O PODER NA PRISÃO — Apesar das pressões e ameaças, inclusive de morte, Barbosa foi implacável com os mensaleiros. José Dirceu foi condenado a sete anos e onze meses e José Genoino a quatro anos e oito meses de cadeia por crime de corrupção.
          A reação estava diretamente relacionada às dificuldades presentes no caso. Lula e o PT jogaram pesado para adiar o início do julgamento, numa tentativa de facilitar a prescrição de certos crimes. Também procuraram ministros para convencê-los a reduzir as penas da companheirada e suavizar o enredo criminoso.
          Quando o julgamento finalmente começou, Barbosa teve de comprar uma série de brigas para tirar o tribunal de uma espécie de zona de conforto. Uma zona de conforto que, registre-se, sempre contribuiu para dificultar a condenação de políticos, empresários e banqueiros.
          Barbosa bateu de frente com os próprios colegas para garantir e acelerar as votações. Chegou a agredi-los verbalmente, acusá-los de cumplicidade com chicanas e acabou isolado dentro do tribunal. Pagou um custo pessoal que, segundo seus assessores, foi compensado pelo benefício proporcionado à sociedade.
          O ministro também partiu para um duelo aberto com os maiores criminalistas do país. Recu­sou-se a recebê-los para conversas informais. Parece irrelevante, mas não é. Não são poucos os magistrados que fazem questão de agradar aos grandes nomes da advocacia nacional, mesmo que por meio de pequenos gestos.
          De origem humilde, Barbosa teve coragem de romper com esses “rapapés aristocráticos”, conforme expressão lapidar cunhada pelo antropólogo Roberto DaMatta. O custo pessoal, novamente, não foi pequeno.
          “As grandes marcas dele, infelizmente, são a truculência no trato e a intolerância com os pontos de vista que não convergiam com os dele”, afirma Alberto Toron, advogado do petista João Paulo Cunha, o ex-presidente da Câmara encarcerado na Papuda. Barbosa, de fato, nem sempre lida bem com a divergência.
          Muitas vezes, mostrou-se iracundo e autoritário. Certa vez, mandou um jornalista “chafurdar na lama” porque ele ousou lhe fazer uma pergunta. Para o ministro aposentado do STF Carlos Velloso, Barbosa pecou na forma, mas, no caso do mensalão, acertou em cheio no conteúdo. “As instituições valem por si, mas a grandeza depende das pessoas que fazem funcionar as instituições.
          Barbosa conduziu com firmeza um julgamento exemplar de um processo tormentoso, com muitos réus, e não eram réus quaisquer”, diz Velloso. Se não tivesse coragem de enfrentar tantas trincheiras, talvez o STF estivesse até hoje às voltas com requerimentos, petições, questões de ordem…
          Depois do mensalão, Barbosa definiu duas prioridades. Uma delas era participar do julgamento sobre as perdas decorrentes dos planos econômicos. Trata-se de um processo bilionário que opõe correntistas a instituições financeiras. No STF, especulava-se que o ministro, após mandar políticos e empresários para a cadeia, votaria contra os bancos.
          Com a análise desse caso econômico adiada novamente, Barbosa decidiu antecipar a aposentadoria. A outra prioridade era garantir a eficácia das penas aplicadas aos mensaleiros.
          Barbosa se insurgiu contra os privilégios concedidos a eles na cadeia. Recentemente, suspendeu a autorização de trabalho externo. Com base num laudo médico, revogou a prisão domiciliar de José Genoi­no. O ex-ministro José Dirceu nunca recebeu aval para trabalhar fora do presídio.
Os advogados dos mensaleiros recorreram dessas decisões ao plenário do STF. Não está certo se o julgamento do recurso ocorrerá antes ou depois da aposentadoria de Barbosa.
          Se a saída tiver acontecido, será sorteado um novo relator, e a presidência já estará sob a responsabilidade de Ricardo Lewandowski. Afilhado político da ex-primeira-dama Marisa Letícia, Lewandowski é lhano no trato, tem boas relações com os colegas e os advogados e defendeu a absolvição de Dirceu e Genoino no processo. Especialista nos “rapapés aristocráticos”, ele é a antítese de Barbosa.
O PT não vê a hora de seu algoz sair de cena. De certa forma, também se cansou da briga. “A postura dele não foi de um estadista do Poder Judiciário. Constatamos uma postura carregada de ódio que não caberia a um juiz”, disse o deputado Vicentinho, líder do PT na Câmara, ao comentar a aposentadoria.
          Essa declaração é legítima e faz parte do jogo democrático. Pena que o PT não pare por aí. Militantes do partido na internet, como VEJA mostrou, chegaram a ameaçar Barbosa de morte. “Contra Joaquim Barbosa toda violência é permitida, porque não se trata de um ser humano, mas de um monstro e de uma aberração moral das mais pavorosas. Joaquim Barbosa deve ser morto”, escreveu um deles.
          Extenuado, o ministro quer se afastar da artilharia petista e, mais importante, virar a página do mensalão. Para ele, o assunto está encerrado, pacificado.
Não é à toa. Sob sua batuta, o Supremo deu aos brasileiros uma lição de moralidade e intransigência com as roubalheiras. Uma lição que até desafetos, como o ministro Marco Aurélio, fizeram questão de ressaltar: “O Supremo, como colegiado, acabou por reafirmar que a lei é lei para todos indistintamente e que não se agradece a esse ou aquele ato a partir da ocupação da cadeira no Supremo”.
Barbosa não agradeceu a Lula, o que permitiu ao país dar um passo importante em sua escalada civilizatória. Eis aí um grande legado.
          A meritocracia do esforço
          Muito pobre na infância, Joaquim Barbosa estudou, trabalhou, foi aprovado em concurso público e chegou à mais alta corte de Justiça do país sem precisar de amigos influentes, favores ou uma mãozinha de políticos.
1. Nascido em uma família humilde de Paracatu (MG), Joaquim Barbosa teve de trabalhar desde cedo para sustentar a casa. Filho de um pedreiro e uma dona de casa, ajudava o pai a fabricar tijolos e a entregar lenha.
2. Aos 16 anos, Barbosa foi sozinho para Brasília, arrumou emprego em uma gráfica, e terminou o ensino médio, sempre estudando em colégio público.
3. Aos 22 anos, tornou-se oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores. Depois acabou reprovado num concurso para diplomatas devido, diz ele, a preconceito racial.
4. Formado em direito, foi aprovado no concurso para procurador da República. Fez doutorado na Sorbonne, em Paris, foi professor visitante na Universidade Colúmbia, em Nova York, e na Universidade da Califórnia.
5. Em 2003, Joaquim Barbosa estava nos Estados Unidos quando foi convidado pelo ex-presidente Lula a assumir a vaga no STF.

Fonte: Veja.
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