Francisco Miguel de Moura, escritor, membro
da Academia Piauiense de Letras
Todos nós, principalmente os interioranos, tivemos o
rio da nossa infância. E esta lembrança, às vezes traz saudade, sentimento
natural que vem por conta de que a água preenche cerca de dois terços do nosso
mundo, o planeta Terra. Assim é o nosso corpo também: 70% de líquido, embora
animais terrestres. Todos os poetas têm
um rio para cantar. Fernando Pessoa é o grande exemplo. Num poema em que diz
amar o rio Tejo. “Só que o Tejo não corre
por minha aldeia”. Mas, certamente, as águas do rio de sua aldeia
desaguariam no Tejo. Com o trocadilho, faz uma imagem belíssima do seu rio. Da
Costa e Silva tem o “Parnaíba, o velho monge,
as barbas brancas alongando e, ao longe, o mugido dos bois de minha terra” - o
grande rio da saudade do maior poeta piauiense. Já o meu rio de criança, qual é? O Parnaíba
também é o meu rio, “só que ele não passa
por minha aldeia”. Em “Jenipapeiro”, minha aldeia, quem passa é um rio que
não é rio, é um riacho grande, o Riachão. Mas, no meu tempo de menino, nas
cheias de outubro a fevereiro, ele corria como um rio de vergonha. Eu me
encantava quando ouvia o ronco de sua primeira cheia, a primeira “cabeçada d’água”
em grande altura correndo sobre o leito seco. Era um espetáculo maravilhoso.
Quem estivesse no meio não se livraria da morte, a menos que soubesse nadar bem,
coisa que eu nunca aprendi. Meu pai era um bom nadador, gostava de atravessá-lo
nas cheias, levando as pessoas e seus pertences para a outra margem. Ele
gostava também de pescar e pescava com tarrafas feitas por ele próprio, pescava
peixes grandes e peixinhos para o nosso almoço, o nosso “pirão”. Eu só pescava no verão, quando o Riachão
baixava a corredeira e deixava poços enormes (para mim, naquela idade). Eram mandis,
curimatãs, branquinhas e corrós, que a gente ia buscar dentro das locas. Alegremente,
levava o resultado de minha pesca para casa, e então minha mãe preparava o
almoço. Era uma festa. No tempo das enchentes o meu rio era um rio
“macho”, com força, que nos embevecia e ao mesmo tempo nos causava medo. Depois
secava e a gente tinha pena, ia apenas tomar banho em cacimbas cavadas no
leito. Portanto, meu rio não foi aquele açude em que me banhava nu, com Rosinha
também nua, ambos inocentes, no Angico Branco (região de Picos). Ela está imortalizada
em meu poema “Sonetos da Paixão” e também num soneto inédito, denominado
“Primeira Namorada”, onde eu abro a cortina das minhas mentiras (ficções de
poeta) e troco o nome de Rosinha pelo verdadeiro: Francelina.
Todos tivemos o nosso rio como tivemos as nossas
namoradas. No caso da escritora Deolinda Marques, deve ter tido namorados, pois
ela teve por rio o Guaribas, na hoje cidade de Bocaina, rio que naquele tempo
ainda era perene, e agora se orgulha da sua barragem, por mim imortalizada no
romance “Dom Xicote”. Mas o Guaribas também foi o meu rio, quando meu pai,
professor andejo, morou no encontro do Riachão com o Guaribas, lugarzinho de
nome Barra, próximo de Bocaina. Foi quando meu pai fazia tarrafas, pescava no
encontro dos rios e fazia a comida para nós pequenos, quando chegava a nossa
casa, em silêncio: - Ele estava separado de minha mãe, que ficou na Sussuapara,
por causa de brigas do casal. Desse tempo tenho mais saudades. Por isto
pergunto, no meu soneto “Saudade”: Por que a saudade é também uma coisa triste?
Por que os tempos mais pesados, mais sofridos em carência, são os que mais
ficam em nossa memória? Quem chegar a ler “O menino quase perdido” poderá encontrar
alguma resposta, em fragmentos, do que estou referindo.
O Itaim, para onde corre o Guaribas, também foi meu
rio. Morávamos em “Aroeiras”, do município de Picos. Também foi um tempo
salobro e insalubre, tal como as águas povoadas de piranhas do itainense rio.
Por essa razão, nunca pus os pés nele. Como sabemos, o Itaim despeja no
Canindé: este eu não conheço, é meu elo perdido das águas. Eis a rede
hidrográfica do médio Piauí, a parte que começa na zona mais seca, nos contrafortes
da Serra do Araripe. Se eu errei alguma coisa, me perdoem os geógrafos. Aqui me
interessam primeiro as águas da minha saudade, não os elementos geográficos em
si. É uma geografia sentimental.
Sequer tive a oportunidade de estar na foz do Canindé,
quando se esparrama no Parnaíba. À nossa Teresina cheguei, para morar
definitivamente, em 1964. Mas já conhecia o grande rio desde menino. Só tenho
espaço aqui, para contar, que atravessei o Parnaíba, de barco, indo para o
Maranhão, numa passagem de nome “Mescla”, ou “Amescla”, ali na altura de quem
desce de Elesbão Veloso até o Parnaíba, sem fazer voltas.
No penúltimo sábado, assisti, na Academia, várias
palestras sobre o rio Paranaíba e sua morte lenta. Mas, de certo tempo para cá,
não tão lenta. Ouvi os discursos de Humberto Guimarães e de Elmar Carvalho.
Eles falaram verdades cruas. Nos anos 1960 a gente podia tomar banho em suas
“coroas”, que não corria perigo de doenças. Quantas vezes nele nos banhamos,
eu, minha família, meus amigos e amigas daquele tempo! São coisas do passado, ficaram
em livros, nos jornais, e pronto. O Parnaíba está triste, transformado num
esgoto a céu aberto, secando, as margens sem florestas, transformadas que foram
em roças de pastagem ou plantio de lavouras de subsistência. Assim, sem o
lençol de suas margens, correm areias e detritos para o leito do rio e o
aterram. Que maldade! Que barbaridade! Toda a rede hidrográfica do Piauí chega
ao Parnaíba já degradada. Nós não ansiaríamos
um porto no mar, se houvéssemos tratado bem o Parnaíba. Agora, babau! Nem porto
nem rio.
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