terça-feira, 17 de março de 2015

"Leniência com a corrupção".


          "A criação do Universo foi a primeira ocasião para a corrupção prosperar. Com o diabo à espreita, a “obra” foi realizada em seis dias, sem licitação. Ao que se saiba, não houve suspeita quanto à idoneidade do Criador. À época, porém, não existiam governos, empreiteiras e políticos.

          No Brasil atual, até frases nos envergonham. O advogado do lobista Fernando Baiano foi franco: “Sem uma composição ilícita, não se coloca um paralelepípedo no chão”. Na mesma linha, o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa — tratado carinhosamente por Lula como Paulinho — afirmou que “as doações de campanha são empréstimos a juros altos”. O óbvio é deprimente.

          De fato, a promiscuidade é a regra. Nas eleições de 2014, empresas da Lava-Jato doaram cerca R$ 400 milhões para políticos de diversos partidos. Dentre os 27 integrantes da CPI da Petrobras, 15 foram agraciados com doações que somaram R$ 3 milhões. Por outro lado, no ano passado, as empreiteiras receberam R$ 3,6 bilhões somente da União. É a oração de São Francisco de Assis às avessas.

          Na Petrobras, como o lema era “ou dá ou desce”, as empreiteiras não tiveram pudor. Formaram um “clube” fechado e impediram que centenas de empresas brasileiras — e outras tantas do exterior — tivessem a oportunidade de prestar serviços à estatal. O cartel lucrou com contratos superfaturados por muitos anos. Não há notícias de que algum empresário tenha se encontrado com o ministro da Justiça — dentro ou fora da agenda ministerial — para denunciar a “extorsão”. Sequer houve um telefonema para Dilma ou Lula para contar-lhes que o “Paulinho” e meia dúzia de outros corruptos estavam lhe enfiando a faca no pescoço.
          Após a lista de Janot, empresários e políticos — principalmente os governistas — estão em pânico. Conforme as delações, até o caixa da campanha de Dilma em 2010 foi abastecido por recursos desviados da Petrobras, travestidos de doações legais. Na prática, o Tribunal Superior Eleitoral lavou o dinheiro.

          O problema é que quando a selva pega fogo, os bichos se unem. Jamais vi tantas autoridades tentando blindar empresas envolvidas em corrupção, com o lenga-lenga de evitar que elas quebrem, o país pare e o desemprego aumente. Bobagem.

          A economia já estava estagnada antes da Lava-Jato. As empresas, mesmo declaradas inidôneas, poderão manter os contratos em andamento e até celebrar aditivos, a exemplo da Delta Construções, que chegou a receber R$ 134 milhões do governo em 2014. Além disso, “quem gera emprego é a obra, e não a empreiteira”, como disse o procurador do Ministério Público junto ao TCU, Júlio Marcelo.

          Quanto ao fato de estarem endividadas, as empresas devem fazer o dever de casa. Enxugar despesas, vender ativos para reforçar o caixa e, se for o caso, entrar com pedidos de recuperação judicial, como tantas outras empresas estão fazendo em função da situação econômica do país. Ou será que o BNDES irá gerar um Proer para o cartel?

          Para atenuar as suas dificuldades e obter todos os benefícios da Lei Anticorrupção, as empresas deverão colaborar, efetivamente, com as investigações do Ministério Público Federal (MPF), instituição que tem legitimidade e, sobretudo, independência para celebrar os acordos de leniência. Este caminho já foi seguido por seis empresas de menor porte.

          Curiosamente, a maioria das grandes empreiteiras prefere barganhar acordos de leniência na Controladoria-Geral da União, órgão da Presidência da República. Lá, pretendem admitir malfeitos, detalhar os ilícitos (a parte confessável, pois a CGU não tem as informações completas das delações, que só os procuradores que compõem a Lava-Jato possuem) e devolver o que roubaram. Assim, continuarão a fazer contratos com o governo, incluindo empréstimos nos bancos públicos. Nem multas irão pagar, pois a lei é recente e não retroage para prejudicá-las. A boa vontade do governo contribuirá para que as empresas e os seus dirigentes segurem a onda e a língua junto ao MPF e ao juiz Sérgio Moro. A pizza está no forno.

          O receio do governo é que novas delações premiadas e acordos de leniência celebrados por empresários e empresas com o MPF possam levar o maior escândalo de corrupção da história do país à porta do Palácio do Planalto. Afinal, qualquer fato adicional poderá se tornar o Fiat Elba de Dilma, a fagulha do impeachment.

          Domingo, dois milhões de pessoas foram às ruas. No Brasil, país em que há roubo na colocação de qualquer paralelepípedo, o essencial é a reconstrução da ética e da moral. Por enquanto, “obra” sem qualquer suspeita, só a do Criador."

Gil Castello Branco é economista e fundador da organização não-governamental Associação Contas Abertas. Publicado no Jornal O Globo de hoje. 

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quinta-feira, 12 de março de 2015

PREGAÇÃO SOLITÁRIA

                José Antônio Reguffe se tornou um especialista na arte de criar constrangimentos a seus pares. Em 2006, quando foi eleito deputado distrital em Brasília, seu primeiro ato foi renunciar às mordomias e aos benefícios do cargo. Nada de carro, motorista, verba indenizatória ou 14º e 15º salários. Enfrentou como consequência a indiferença dos colegas, mas a iniciativa repercutiu bem.
          Na eleição seguinte, em 2010, tentou uma vaga no Congresso e acabou sendo o deputado federal mais votado do país em números proporcionais. Na Câmara, repetiu o exemplo. Dispensou assessores, devolveu passagens de avião, recusou cotas e auxílios disso e daquilo.
          Resultado: apesar das ácidas críticas dos parlamentares, em 2014 ele saiu das urnas com o título de mais jovem senador da história do Distrito Federal. Na começo do mês, logo depois da posse no novo cargo, Reguffe anunciou que estava abrindo mão de uma série de regalias destinadas aos nobres senadores.
          Em caráter irrevogável, ele não aderiu ao plano de saúde que reembolsa serviços médicos sem nenhum limite. Zerou os gastos com verba indenizatória e passagens aéreas – respectivamente, 15 000 e 6 000 reais por mês. Cortou pela metade os gastos com funcionários do seu gabinete, reduzindo o total de assessores de 55 para doze. E, como fizera na Câmara, abdicou do auxílio-moradia de 3 800 reais – uma ajuda esdrúxula para os parlamentares da capital.
          Durante a campanha, Reguffe foi duramente criticado pelos adversários. “Ele usa a austeridade como demagogia. Em oito anos como parlamentar, não aprovou nenhum de seus 34 projetos”, disse, durante a campanha, o então candidato do PT ao Senado, Geraldo Magela. O petista, que tinha a máquina do governo a seu dispor, terminou a disputa em terceiro lugar – e gastou 3,8 milhões na campanha, dez vezes o orçamento declarado por Reguffe.
          Diante da aprovação nas urnas, o novo senador do PDT não pensou duas vezes: “Se os colegas fizerem a mesma coisa, economizaremos mais de 1 bilhão de reais dos impostos pagos pela população”. Na semana passada, Reguffe chegou ao Senado dirigindo o próprio carro. Foi barrado pelos seguranças e teve de se identificar para entrar no prédio, algo que não acontece com os parlamentares que desembarcam do carro oficial com motorista.
          A austeridade do senador não poupou nem sua esposa. Embora trabalhasse no Congresso havia anos, ela pediu demissão para evitar insinuações de nepotismo.

Reportagem de Adriano Ceolin publicada em edição impressa de VEJA.


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sexta-feira, 6 de março de 2015

"A vaca vai pro brejo?"

Por Marta Suplicy - Folha de São Paulo

                   É um privilégio neste momento crítico da política brasileira voltar a este espaço que ocupei em 2011 e 2012. Já colaborei na Folha, em cadernos e anos diversos, exercendo atividade diferente da que tenho hoje. Tenho consciência da importância que foi chegar a milhares de pessoas quebrando tabus, defendendo os direitos do povo, das mulheres e minorias, avançando em temas de difícil aceitação.
          Senadora, e com uma visão muito crítica da situação política brasileira, sinto-me no dever de exercer neste espaço a audácia e transparência que caracterizaram minha vida.
          Em política existem duas coisas que levam a vaca para o atoleiro: a negação da realidade e trabalhar com a estratégia errada.
          O governo recém-empossado conseguiu unir as duas condições. A primeira, a negação das responsabilidades quando a realidade se evidencia. A segunda, consequência da mentira, desemboca na estratégia equivocada. Estas condições traduzem o que está acontecendo com o governo e o PT.
          O começo foi bem antes da campanha eleitoral deslanchar. Percebiam-se os desacertos da política econômica. Lula bradava por correções. Do Palácio, ouvidos moucos. Era visto como um movimento de fortalecimento para a candidatura do ex-presidente já em 2014. E Lula se afasta. Ou é afastado. A história um dia explicará as razões. O ex-presidente só retorna quando a eleição passa a correr risco.
          Afunda-se o país e a reeleição navega num mar de inverdades, propaganda enganosa cobrindo uma realidade econômica tenebrosa, desconhecida pela maioria da população.
          Posse. Espera-se uma transparência que, enquanto constrangedora e vergonhosa, poderia pavimentar o caminho da necessária credibilidade.
          Ao contrário, em vez de um discurso de autocrítica, a nação é brindada com mais um discurso de campanha. Parece brincadeira. Mas não é. E tem início a estratégia que corrobora a tese de que quando se pensa errado não importa o esforço, porque o resultado dá com os "burros n'água".
          Os brasileiros passam a ter conhecimento dos desmandos na condução da Petrobras. O noticiário televisivo é seguido pelo povo como uma novela, sem ser possível a digestão de tanta roubalheira. Sistêmica! Por anos. A estratégia de culpar FHC (não tenho ideia se começou no seu governo) não faz sentido, pois o tamanho do rombo atual faz com que tudo pareça manobra diversionista. 
          Recupera-se o discurso de que as elites se organizam propagando mentiras porque querem privatizar a Petrobras. Valha-me! O povo, e aí refiro-me a todas as classes sociais, está ficando muito irritado com o desrespeito à sua inteligência. 
          Daqui a pouco o lamentável episódio ocorrido com Guido Mantega poderá se alastrar. Que triste.

Marta Suplicy é senadora, ex-ministra da cultura, do turismo e ex-prefeita de São Paulo.

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